Fulminantes
2024
ArteFASAM Galeria, São Paulo, SP
2024
ArteFASAM Galeria, São Paulo, SP
A escritora Ursula Le Guin constrói uma história da origem da ficção tendo a bolsa como ferramenta principal da evolução narrativa do romance. A bolsa, que serve ao coletar e ao guardar como verbos de ação por excelência, transforma a história da vida contada. Longe do herói, sem o osso ou qualquer outro instrumento longo e pontiagudo, excluem-se verbos associados à dominação como o lutar, o conquistar e o matar.
Dado que a forma da bolsa, da coisa que contêm coisas, emula a forma de órgãos humanos e não humanos que servem função semelhante – o útero, a concha, a fava – proponho que esta sirva de elemento simbólico para pensarmos as obras desta exposição. Lembremos ainda que as bolsas possuem uma forma de “saco” e que, visualmente, esse contentor se parece com tantos outros alimentos, plantas, órgãos (por isso bolsas e sacos são termos utilizados para denominar aspectos internos dos corpos).
Nesta mostra, pinturas, cerâmicas, esculturas, objetos e instalações endereçam corpos humanos e não humanos e suas relações com o entorno, com os tempos e narrativas, com o sexo, com o fazer e o criar. Por vezes, os fragmentos desses corpos geram uma abstração das formas – quase não entendemos o seio ou a mão, descolados do corpo, solitários. Em outras situações, fragmentos e pedaços são reunidos num todo, mesmo que estranho, porém passível de ser compreendido como um ser único.
Essas obras não são apenas intelectualmente provocadoras, mas sensivelmente impactantes, uma vez percebidas pelo tato ótico que nos permite entender aquilo que é mole, macio e tenro. Conseguimos compreendê-las pelo nosso repertório sensível-intuitivo, que conhece essa aparência pelas sensações e experiências que temos ao viver.
Julia Pereira, que me convidou para curar esta exposição, gestualiza cromaticamente corpos e paisagens num processo de identificação entre elementos visualmente semelhantes que geram direções e sentidos para o pincel. Ana Kesselring separa, agrupa e modela pedaços femininos, corais, conchas e restos de animas, distribuindo-os pelas paredes, às vezes como barrigas prenhas, às vezes como colunas evocativas de vestígios arqueológicos pertencentes a civilizações matriarcais. A partir da série “Psicofísicos”, Dora Smék investiga a conexão entre elementos psicológicos e a fisicalidade visceral da anatomia humana, a partir de uma pesquisa dos Testes de Rorschach, cujas imagens se aproximam da anatomia de ossos humanos. Juliana Cerqueira Leite manipula um filme de slides em “Dobra”, cujo resultado são planos azuis com registros confusos dos gestos que produziram o objeto, indicando como o processo de fatura é complexo, variado e diverso. Mariana Manhães reúne bolsas rosas, amarelas e beges preenchidas por espuma e espuma de poliuretano associando-as a um vídeo de animação protagonizado por um ser simpático, mesmo que enigmático, que ganham vida ao chacoalhar um rabo de cascavel. Por fim, Renata Pedrosa costura tecidos macios (como peles de animais), espicha-os e pendura-os, recheia-os ou não, como se fossem meio-móbiles e meio-brinquedos.
Assim, “Fulminantes” é uma exposição com obras de artistas mulheres que manipulam formas orgânicas, cor e materiais gerando objetos-corpos e imagens-corpos. Nelas, o gesto articula pedaços e cria entes de tecido, barro, tinta, luz. Fulminar diz respeito a lançar raios ou a destruir, mas, metaforicamente, também pode significar algo que provoca fortes emoções, sem avisos previamente dados. Remetendo a algo que toma o corpo como uma convulsão, o termo pode ser utilizado para endereçar eventos sublimes da vida, como o nascer e o morrer.
Voltando às palavras de Le Guin a “bolsa/ barriga/ caixa/ casa/ patuá”, essa coisa que contém coisas e nos auxilia a conhecer, criar, cuidar, construir, digerir, parece ser levada em conta pelas artistas desta exposição. É por meio de uma “bolsa de cultura” que Pereira, Smék, Leite, Kesselring, Manhães e Pedrosa produzem arte ao selecionar e agrupar elementos do corpo e do mundo que, juntos, originam objetos ou entes independentes. Estes se voltam a nós, provocando nosso sentido ótico-tátil, estimulando sensações na pele e memórias imaginadas na mente.
Ana Avelar
Dado que a forma da bolsa, da coisa que contêm coisas, emula a forma de órgãos humanos e não humanos que servem função semelhante – o útero, a concha, a fava – proponho que esta sirva de elemento simbólico para pensarmos as obras desta exposição. Lembremos ainda que as bolsas possuem uma forma de “saco” e que, visualmente, esse contentor se parece com tantos outros alimentos, plantas, órgãos (por isso bolsas e sacos são termos utilizados para denominar aspectos internos dos corpos).
Nesta mostra, pinturas, cerâmicas, esculturas, objetos e instalações endereçam corpos humanos e não humanos e suas relações com o entorno, com os tempos e narrativas, com o sexo, com o fazer e o criar. Por vezes, os fragmentos desses corpos geram uma abstração das formas – quase não entendemos o seio ou a mão, descolados do corpo, solitários. Em outras situações, fragmentos e pedaços são reunidos num todo, mesmo que estranho, porém passível de ser compreendido como um ser único.
Essas obras não são apenas intelectualmente provocadoras, mas sensivelmente impactantes, uma vez percebidas pelo tato ótico que nos permite entender aquilo que é mole, macio e tenro. Conseguimos compreendê-las pelo nosso repertório sensível-intuitivo, que conhece essa aparência pelas sensações e experiências que temos ao viver.
Julia Pereira, que me convidou para curar esta exposição, gestualiza cromaticamente corpos e paisagens num processo de identificação entre elementos visualmente semelhantes que geram direções e sentidos para o pincel. Ana Kesselring separa, agrupa e modela pedaços femininos, corais, conchas e restos de animas, distribuindo-os pelas paredes, às vezes como barrigas prenhas, às vezes como colunas evocativas de vestígios arqueológicos pertencentes a civilizações matriarcais. A partir da série “Psicofísicos”, Dora Smék investiga a conexão entre elementos psicológicos e a fisicalidade visceral da anatomia humana, a partir de uma pesquisa dos Testes de Rorschach, cujas imagens se aproximam da anatomia de ossos humanos. Juliana Cerqueira Leite manipula um filme de slides em “Dobra”, cujo resultado são planos azuis com registros confusos dos gestos que produziram o objeto, indicando como o processo de fatura é complexo, variado e diverso. Mariana Manhães reúne bolsas rosas, amarelas e beges preenchidas por espuma e espuma de poliuretano associando-as a um vídeo de animação protagonizado por um ser simpático, mesmo que enigmático, que ganham vida ao chacoalhar um rabo de cascavel. Por fim, Renata Pedrosa costura tecidos macios (como peles de animais), espicha-os e pendura-os, recheia-os ou não, como se fossem meio-móbiles e meio-brinquedos.
Assim, “Fulminantes” é uma exposição com obras de artistas mulheres que manipulam formas orgânicas, cor e materiais gerando objetos-corpos e imagens-corpos. Nelas, o gesto articula pedaços e cria entes de tecido, barro, tinta, luz. Fulminar diz respeito a lançar raios ou a destruir, mas, metaforicamente, também pode significar algo que provoca fortes emoções, sem avisos previamente dados. Remetendo a algo que toma o corpo como uma convulsão, o termo pode ser utilizado para endereçar eventos sublimes da vida, como o nascer e o morrer.
Voltando às palavras de Le Guin a “bolsa/ barriga/ caixa/ casa/ patuá”, essa coisa que contém coisas e nos auxilia a conhecer, criar, cuidar, construir, digerir, parece ser levada em conta pelas artistas desta exposição. É por meio de uma “bolsa de cultura” que Pereira, Smék, Leite, Kesselring, Manhães e Pedrosa produzem arte ao selecionar e agrupar elementos do corpo e do mundo que, juntos, originam objetos ou entes independentes. Estes se voltam a nós, provocando nosso sentido ótico-tátil, estimulando sensações na pele e memórias imaginadas na mente.
Ana Avelar