MAC USP no século XXI: a era dos artistas
2017-2019
Museu de Arte Contemporânea da USP, São Paulo, SP
2017-2019
Museu de Arte Contemporânea da USP, São Paulo, SP
PARTE 1
A palavra curadoria tem sua raiz no grego "curare", que significa cuidar de. O cuidado, nessa exposição, se traduz no modo como ela celebra a diversidade do trabalho dos artistas contemporâneos, abrindo-se para uma multiplicidade de leituras, que podem incluir encontros, fricções, espelhamentos e contrastes que por sua vez tomam forma nos movimentos e relações que se estabelecem entre as obras e o visitante. Particularmente, aqui, cada visitante é convidado, não a conhecer uma determinada proposta ou moldura curatorial, mas a articular suas próprias vivências, conhecimentos e experiências na relação singular com as obras que se apresentam nos espaços das galerias.
Como profissão dotada de uma história específica, podemos considerar a curadoria como uma atividade recente. Foi apenas no final do século XVIII que o curador se estabeleceu profissionalmente como cuidador de uma coleção ou acervo.
Desde então, seu trabalho tem se definido no tempo através de atividades que se guiam a partir da própria coleção, na sua preservação enquanto patrimônio, na catalogação e pesquisa das obras que a integram, na aquisição de novas obras para atualização do conjunto e, finalmente, na exposição desse acervo.
Ainda que, na essência, o papel do curador tenha se mantido como algo que pressupõe uma dedicação a um acervo, o termo curadoria tem adquirido significados mais amplos e contundentes, que se ligam à construção de pensamentos específicos, ou à criação de sentidos, espelhando e refletindo a complexidade da produção artística contemporânea e da própria vida.
Na era contemporânea, sobretudo a partir das duas últimas décadas do século XX, o curador passou a ter uma importância cada vez maior dentro do sistema da arte, a ponto de aquele momento histórico ser referido por muitos como a era dos curadores. A chancela do curador passa a atribuir credibilidade ao trabalho do artista, inserindo-o no sistema através da criação de discursos e leituras que muitas vezes ultrapassam o campo da estética e da história da arte, introduzindo perspectivas filosóficas, antropológicas, sociológicas, ambientalistas, feministas, entre outras, dentro de um universo teórico interdisciplinar. Nesse contexto, algumas vezes, as obras de arte tendem a operar como palavras que compõem frases escritas pelo curador, ou ainda como conteúdos que sustentam molduras teóricas construídas previamente. Ainda que essas leituras ofereçam interpretações ricas e potentes, elas dificilmente dão conta de esgotar as inúmeras possibilidades que se apresentam intrinsecamente à obra de arte.
Nesse sentido, a presente exposição adotou o subtítulo a era dos artistas como alternativa a esse panorama. Aqui, não há um partido teórico ou uma interpretação curatorial específica a priori.
PARTE 2
Antes de tudo, pensamos que seria importante para uma exposição de acervo, de longa duração evitar leituras fixas (1). De fato, vários caminhos foram pensados para exibir esse recorte da coleção do MAC USP, composto de obras realizadas a partir de 2000, adquiridas com apoios diversos e, em sua grande maioria, doadas pelos próprios artistas. O partido escolhido, o da ocupação das obras no espaço respondendo a um percurso organizado pelo sobrenome do artista, tem o intuito de minimizar sentidos pré-estabelecidos de conexão ou evitar temas ou molduras teóricas prévias, para deixar com que as obras adquiram o máximo de mobilidade conceitual. A ideia é deixar que, em suas leituras, elas voem, viagem, aterrissem em certos momentos, para levantar novos voos depois.
A listagem de nomes substituiu o critério cronológico, que seria uma possibilidade. A decisão final considerou que a produção contemporânea possui um fluxo que desobedece a temporalidade horizontal ou a noção cronologicamente organizada de história. No momento contemporâneo, experimentamos o tempo de forma enviesada (2). Ou como afirma o filósofo norte-americano Arthur Danto, vivemos o fim da arte como história linear, no momento em que ela se liberta das flechas do tempo, assumindo um tempo pós-histórico (3).
A escolha desse tipo de sistematização também responde à construção de pesquisas e curadorias realizadas no MAC USP, desde meados dos anos 1990, intitulada Tendências Contemporâneas. Consideramos que a pesquisa, realizada de maneira consistente, constitui a principal vocação de um museu universitário. Tendências Contemporâneas partiu de um mapeamento da produção brasileira contemporânea, lançando as bases para a compreensão do panorama de pensamento da arte no século XXI (4).
A preocupação com o estabelecimento de um diálogo vivo entre a instituição museu de arte e a com a atualização sistemática do museu em relação à produção contemporânea gerou livros, catálogos, vídeos, encontros e uma série de exposições intituladas Heranças Contemporâneas, que se iniciaram no MAC USP em 1997. O projeto, que buscava compreender as referências conceituais e estéticas da geração que surgia a partir de meados nos anos 1990, consultou e trabalhou junto com os artistas, tanto para elencar os nomes que seriam escolhidos como referências, quanto para a escolha das obras e disposição das mesmas no espaço expositivo. Isto é, substituindo a noção de exposição delineada apenas pela visão do curador, Heranças Contemporâneas tomou corpo como um projeto curatorial organizado junto com os artistas, a partir do que eles apontavam ser as referências e influenciais para construção de sua obra e suas poéticas. A curadoria, no caso, teve o papel de organizar os múltiplos percursos que se traçavam e refletir sobre essas escolhas feitas pelos artistas.
A presente exposição incorpora a atitude de trabalhar junto e propõe justamente uma curadoria quase invisível, que busca colocar o foco expositivo nas obras dos artistas. Não há prévias leituras ou percursos conceituais definidos. As obras se abrem para a exploração livre e às experiências de cada observador que, munido de liberdade, fará suas próprias conexões e relações de identidade e alteridade, entre tantas conversas possíveis.
Isto é, trata-se de uma curadoria que assume a vontade de fazer emergir os significados polivalentes intrínsecos à obra de arte em suas relações com o outro e com os outros, em processos dinâmicos e incessantes. As conexões são fios móveis, que não param de passar.
Katia Canton
Notas:
1. Cabe aqui explicar que a exposição MAC USP no Século XXI: a Era dos Artistas tem uma temporalidade expandida e deve ficar, ao menos, 5 anos em cartaz, de forma que o público possa ir e voltar ao espaço, vendo e revendo obras de seu interesse, estando reservada à sala menor uma mobilidade no sentido de eventuais trocas e incorporações de novas obras
.2. O conceito está explicado no livro Narrativas Enviesadas, da coleção Temas da Arte Contemporânea (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011).
3. Arthur Danto. Após o Fim da Arte: arte contemporânea e os limites da história. (São Paulo: EDUSP, 2006).
4. Uma discussão sobre a pesquisa Tendências Contemporâneas e sobre a série de exposições Heranças Contemporâneas se encontra no livro Novíssima Arte Brasileira: um guia de tendências (São Paulo, Iluminuras, 2000).
A palavra curadoria tem sua raiz no grego "curare", que significa cuidar de. O cuidado, nessa exposição, se traduz no modo como ela celebra a diversidade do trabalho dos artistas contemporâneos, abrindo-se para uma multiplicidade de leituras, que podem incluir encontros, fricções, espelhamentos e contrastes que por sua vez tomam forma nos movimentos e relações que se estabelecem entre as obras e o visitante. Particularmente, aqui, cada visitante é convidado, não a conhecer uma determinada proposta ou moldura curatorial, mas a articular suas próprias vivências, conhecimentos e experiências na relação singular com as obras que se apresentam nos espaços das galerias.
Como profissão dotada de uma história específica, podemos considerar a curadoria como uma atividade recente. Foi apenas no final do século XVIII que o curador se estabeleceu profissionalmente como cuidador de uma coleção ou acervo.
Desde então, seu trabalho tem se definido no tempo através de atividades que se guiam a partir da própria coleção, na sua preservação enquanto patrimônio, na catalogação e pesquisa das obras que a integram, na aquisição de novas obras para atualização do conjunto e, finalmente, na exposição desse acervo.
Ainda que, na essência, o papel do curador tenha se mantido como algo que pressupõe uma dedicação a um acervo, o termo curadoria tem adquirido significados mais amplos e contundentes, que se ligam à construção de pensamentos específicos, ou à criação de sentidos, espelhando e refletindo a complexidade da produção artística contemporânea e da própria vida.
Na era contemporânea, sobretudo a partir das duas últimas décadas do século XX, o curador passou a ter uma importância cada vez maior dentro do sistema da arte, a ponto de aquele momento histórico ser referido por muitos como a era dos curadores. A chancela do curador passa a atribuir credibilidade ao trabalho do artista, inserindo-o no sistema através da criação de discursos e leituras que muitas vezes ultrapassam o campo da estética e da história da arte, introduzindo perspectivas filosóficas, antropológicas, sociológicas, ambientalistas, feministas, entre outras, dentro de um universo teórico interdisciplinar. Nesse contexto, algumas vezes, as obras de arte tendem a operar como palavras que compõem frases escritas pelo curador, ou ainda como conteúdos que sustentam molduras teóricas construídas previamente. Ainda que essas leituras ofereçam interpretações ricas e potentes, elas dificilmente dão conta de esgotar as inúmeras possibilidades que se apresentam intrinsecamente à obra de arte.
Nesse sentido, a presente exposição adotou o subtítulo a era dos artistas como alternativa a esse panorama. Aqui, não há um partido teórico ou uma interpretação curatorial específica a priori.
PARTE 2
Antes de tudo, pensamos que seria importante para uma exposição de acervo, de longa duração evitar leituras fixas (1). De fato, vários caminhos foram pensados para exibir esse recorte da coleção do MAC USP, composto de obras realizadas a partir de 2000, adquiridas com apoios diversos e, em sua grande maioria, doadas pelos próprios artistas. O partido escolhido, o da ocupação das obras no espaço respondendo a um percurso organizado pelo sobrenome do artista, tem o intuito de minimizar sentidos pré-estabelecidos de conexão ou evitar temas ou molduras teóricas prévias, para deixar com que as obras adquiram o máximo de mobilidade conceitual. A ideia é deixar que, em suas leituras, elas voem, viagem, aterrissem em certos momentos, para levantar novos voos depois.
A listagem de nomes substituiu o critério cronológico, que seria uma possibilidade. A decisão final considerou que a produção contemporânea possui um fluxo que desobedece a temporalidade horizontal ou a noção cronologicamente organizada de história. No momento contemporâneo, experimentamos o tempo de forma enviesada (2). Ou como afirma o filósofo norte-americano Arthur Danto, vivemos o fim da arte como história linear, no momento em que ela se liberta das flechas do tempo, assumindo um tempo pós-histórico (3).
A escolha desse tipo de sistematização também responde à construção de pesquisas e curadorias realizadas no MAC USP, desde meados dos anos 1990, intitulada Tendências Contemporâneas. Consideramos que a pesquisa, realizada de maneira consistente, constitui a principal vocação de um museu universitário. Tendências Contemporâneas partiu de um mapeamento da produção brasileira contemporânea, lançando as bases para a compreensão do panorama de pensamento da arte no século XXI (4).
A preocupação com o estabelecimento de um diálogo vivo entre a instituição museu de arte e a com a atualização sistemática do museu em relação à produção contemporânea gerou livros, catálogos, vídeos, encontros e uma série de exposições intituladas Heranças Contemporâneas, que se iniciaram no MAC USP em 1997. O projeto, que buscava compreender as referências conceituais e estéticas da geração que surgia a partir de meados nos anos 1990, consultou e trabalhou junto com os artistas, tanto para elencar os nomes que seriam escolhidos como referências, quanto para a escolha das obras e disposição das mesmas no espaço expositivo. Isto é, substituindo a noção de exposição delineada apenas pela visão do curador, Heranças Contemporâneas tomou corpo como um projeto curatorial organizado junto com os artistas, a partir do que eles apontavam ser as referências e influenciais para construção de sua obra e suas poéticas. A curadoria, no caso, teve o papel de organizar os múltiplos percursos que se traçavam e refletir sobre essas escolhas feitas pelos artistas.
A presente exposição incorpora a atitude de trabalhar junto e propõe justamente uma curadoria quase invisível, que busca colocar o foco expositivo nas obras dos artistas. Não há prévias leituras ou percursos conceituais definidos. As obras se abrem para a exploração livre e às experiências de cada observador que, munido de liberdade, fará suas próprias conexões e relações de identidade e alteridade, entre tantas conversas possíveis.
Isto é, trata-se de uma curadoria que assume a vontade de fazer emergir os significados polivalentes intrínsecos à obra de arte em suas relações com o outro e com os outros, em processos dinâmicos e incessantes. As conexões são fios móveis, que não param de passar.
Katia Canton
Notas:
1. Cabe aqui explicar que a exposição MAC USP no Século XXI: a Era dos Artistas tem uma temporalidade expandida e deve ficar, ao menos, 5 anos em cartaz, de forma que o público possa ir e voltar ao espaço, vendo e revendo obras de seu interesse, estando reservada à sala menor uma mobilidade no sentido de eventuais trocas e incorporações de novas obras
.2. O conceito está explicado no livro Narrativas Enviesadas, da coleção Temas da Arte Contemporânea (São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011).
3. Arthur Danto. Após o Fim da Arte: arte contemporânea e os limites da história. (São Paulo: EDUSP, 2006).
4. Uma discussão sobre a pesquisa Tendências Contemporâneas e sobre a série de exposições Heranças Contemporâneas se encontra no livro Novíssima Arte Brasileira: um guia de tendências (São Paulo, Iluminuras, 2000).