Zona Cinzenta
2019
Rua da Mooca, São Paulo, SP
A cidade está em crescimento constante. Seus limites alteram, suas fronteiras expandem. Construções são demolidas para então serem reconstruídas ou substituídas. A expansão da cidade reconfigura os bairros, expulsa os moradores, redesenha a paisagem. As constantes mudanças deixam traços de outros tempos, ruínas que ocupam os interstícios das novas construções e que sedimentam indícios dos usos e costumes passados.
Ao longo do século XX, as cidades passaram por mudanças para satisfazer as necessidades de circulação do capital. A cada novo ciclo de acumulação capitalista, novas estruturas espaciais são criadas para atender a reprodução do valor, enquanto outras são desertadas, relegando muitas vezes territórios inteiros ao abandono. Os resíduos deixados pelas demolições e pelo abandono de infraestruturas testemunham as transformações constantes no espaço urbano. Essas transformações acompanham a velocidade das exigências dos ciclos reprodutivos do capital financeiro que, principalmente a partir da década de 1990, determinaram a especulação imobiliária como alternativa à crise dos setores produtivos e manufatureiros.
As ruínas são os estratos do tempo depositados na paisagem urbana, fragmentos de prédios abandonados e esquecidos durante os inúmeros processos de requalificação das cidades. São resíduos, restos de tempos diversos que persistem diante das transformações e assim evidenciam esses mesmos processos.
Comportam-se como zonas indeterminadas, tempos intermediários, lugares de usos indefinidos. Podemos trata-las como soleiras, umbrais ou limiares que deixam entrever as transições e passagens dos espaços e tempos urbanos.
Uma exploração dos friches industriais da primeira fase da industrialização de São Paulo, localizados no entorno das ferrovias, evidenciaram a presença de grades, telas e arames farpados nas janelas das fábricas. Algumas dessas vedações foram colocadas para evitar a invasão dos prédios desativados, outras foram instaladas quando as indústrias ainda estavam em funcionamento.
A presença de vedações em grande parte das janelas das ruínas fabris indicou para uma associação formal entre fábrica e presídio ou campo de concentração. Um procedimento alegórico que busca criar uma projeção, ao mesmo tempo espacial e temporal, daquelas estruturas construtivas e que consiste em reivindicar um novo significado para aquelas ruínas.
As fábricas, como espaços fechados que concentravam os operários durante suas jornadas de trabalho, em regime de permanente vigilância e controle guardam semelhanças com os cárceres e os centros de confinamento. No entanto, ao operário ainda era concedida uma pausa, à sombra do rígido controle, nos momentos em que não vendia sua hora de trabalho.
Com a crise do setor produtivo e manufatureiro as relações de trabalho vêm mudando. A acumulação do capital não tem mais o seu principal foco na fábrica onde o detentor do capital fiscalizava, comandava e disciplinava o trabalhador para a geração de mais valia. Embora a mais valia continue sendo a base de sustentação capitalista, a extração de capital se intensificou com a participação no sistema financeiro. Ou seja, se antes predominava a trocada força de trabalho por salário, agora troca-se força de trabalho por compromisso de dívida.
A força de trabalho assalariada foi substituída por trabalhadores precarizados e endividados. O endividamento ajuda a produzir um excedente social e garante um aprofundamento do processo de acumulação. A cidade é agora uma imensa fábrica, uma vez que a sociedade constituída por trabalhadores precarizados e endividados, está subordinada ao controle capitalista, a quem deve trabalho, dinheiro e, portanto, obediência.
A associação entre fábrica e presídio é enfatizada pelo relato sobre os campos de concentração nazistas do livro Os afogados e os sobreviventes de Primo Levi. O livro discorre sobre o choque do ingresso dos prisioneiros no Lager e também sobre o fenômeno intitulado pelo autor de “zona cinzenta”, uma zona de inter-relações com contornos mal definidos, que ao mesmo tempo separa e une os senhores e os escravos.
Essa relação dialética do senhor e do escravo de Hegel reaparece, nos dias de hoje, mas de uma forma não dialética: a não existência da figura do senhor impossibilita ao escravo transcender-se por negação de seu estado, de suprimir dialeticamente a sua sujeição. Assim, a dívida não é uma subordinação que cria uma linha de atividade pelo trabalho, que transcende o mundo dado, inclusive o próprio senhor que está ligado ao dado que ele deixa intato uma vez que não trabalha; a dívida não propicia um impulso de libertação.
A colocação de um estandarte de madeira e feltro cinza sobre uma janela vedada de uma fábrica desativada na Zona Leste de São Paulo, foi uma maneira alegórica de refletir sobre as questões levantadas neste texto.

Renata Pedrosa