Cava decote gancho
2025
Des_apê, São Paulo, SP
2025
Des_apê, São Paulo, SP
Cava, decote e gancho, enlaçados pela arte de Renata Pedrosa
A série de trabalhos realizada durante a pandemia pela artista Renata Pedrosa, nos apresenta um conjunto de traçados em diferentes cores, feitos com lápis e materiais de desenho e costura para moldes de roupas, que retomam a história da artista com sua mãe, exímia costureira, desde sua infância. Agora, a partir de sua experiência avançada como artista, ela nos surpreende com a possibilidade de reconhecer o sentido preciso do que nomeamos como reinvenção. O que antes foi vivido como participação e contribuição num trabalho à quatro mãos, é atualizado, pelo seu estilo, numa condição de redução dos elementos que compuseram sua história. Já não se trata mais de um trabalho com o objetivo de criação de moldes para a confecção das roupas. A artista opera uma decantação que a conduz aos traços delicados e trabalhosos sobre o papel, cujo produto final é um envoltório para o olhar.
Cava, decote e gancho vestem o olhar: pela fineza dos traços, pela evocação do tempo de trabalho dispendido, pela escolha sensível das cores, assim como, pelo convite que suscitam para se deixar conduzir pelo vazio central que habita cada um dos três. Isso porque, é uma série de trabalhos onde os traços organizam os contornos do corpo. Contudo, se trata de um corpo sem membros, não havendo o desenho de cabeças, braços, pernas, ombros, rostos, mãos, ou sexos... E é exatamente nesse ponto que encontramos a excelência do trabalho simbólico realizado pela artista, uma vez que o material que nos constitue como seres de linguagem, nos permite reconhecer a presença pela ausência. É como se ao olhar para cada um dos trabalhos dessa série, soubéssemos que eles se referem aos elementos que irão nos vestir, não mais como roupas, mas como traços que escrevem e antecipam partes de um corpo por vir. Trata-se, portanto, de uma série que escreve os traços da proto história do corpo, enlaçada pelas marcas dos moldes das vestimentas que um dia irão vesti-lo Existem três pontos constitutivos que merecem especial destaque, principalmente quando recordamos, pela iconografia religiosa, a presença da folha de parreira sobre os corpos de Adão e Eva, depois da expulsão do Paraíso. Constatamos que, pela história cristã, o corpo é representado desde o início com uma presença encobridora, já que se trata de não esquecer do pecado e da culpa por ter desobedecido a Deus e, por isso mesmo, ficar doravante suscetível às tentações e aos suplícios da carne. O que nos leva a admitir que na referência dessa tradição, a qual vai orientar decisivamente a representação imagética ocidental dos corpos, encobertos, ou expostos, irá sempre escapar a presença de um Outro corpo.
Existe uma questão, pouco notada, sobre o tipo de materialidade que se emprega, quando da representação dos corpos, pelas imagens. Não foram muitas, mas não deixaram de ser contundentes, as diferentes experiências que procuraram dar expressão à noção de corpo, sua representação em imagens, de uma forma em que não é coincidente a noção de corpo próprio. Trata-se, da tradição que integra o corpo sem órgãos, de Artaud, o corpo inominável e irrepresentável, de Beckett, a Metamorfose do corpo humano em barata, de Kafka, a mutação do corpo humano em rinoceronte, de Ionesco, os corpos dispersos nas fotografias e postais de Warburg, a experiência íntima com a barata, em Clarice Lispector. No conjunto desses autores, e alguns outros, pode-se reconhecer o desaparecimento da representação habitual do corpo, de forma assegurada. Quando a inconsistência, a mutação e o vazio comparecem como forma de dizer do que acontece com os corpos, é porque não existe mais representação sustentável deles.
Cada um dos autores, do teatro, e da Literatura, procuraram dizer desse Outro corpo, incluindo, por seus textos e experiência, o impossível de dizer dele. Impossível de dizer, segundo a forma pela qual o representamos habitualmente. A materialidade dessa representação de agora é constituída por uma condição simbólica que não se reduz ao sentido. Mais ainda, se trata de incluir nesse impossível da representação, uma forma de dizer em que a identificação se desfaz. Não há como manter uma identificação imaginária com uma barata ou um rinoceronte. Por isso mesmo, a sustentação de si mesmo cai, ou seja, participa-se do absurdo. Esse absurdo é a entrada em cena de uma relação que passa a se estabelecer entre o corpo do leitor e o corpo da barata. A noção de corpo se modifica pela leitura do texto. O surpreendente é constatar que alguns sujeitos compõem seus textos, de dentro dessa condição absurda de ruptura do sentido.
Consideremos que a mudança na noção de representação do corpo em imagens unificadas, para a presença dos corpos sem imagens, ou distorcidas, implica, em primeiro lugar, reconhecer que a imagem unificada não tem duração definitiva e assegurada. Caso contrário, não haveriam as experiências de despersonalização, de estranhamento e recusa do corpo próprio. Quando a imagem corporal, no sentido da imagem do corpo próprio é alterada de forma perturbadora, sem a decisão do sujeito, significa que existe alguma causação inconsciente que se encontra em ação. Em Psicanálise, não se trata de encontrar os motivos, mas sim, de se virar com os acontecimentos. A experiência com o inconsciente nos ensina que não há nenhum sentido a ser revelado, mas o que importa, é poder se virar com as marcas, com os traços que constituiram a história de cada um. E é exatamente nessa tradição que introduz a estruturação dos corpos pelos traços, e não mais pelas imagens, que a série Cava, decote e gancho participa.
O segundo ponto constitutivo dessa série, tem a ver com a função que ocupa o vazio como ponto organizador do quadro. Por um lado, encontramos o vazio como sinonimo dos diferentes espaços deixados em branco. Eles cumprem a função de organizar o olhar através dos traçados que se distribuem pela folha de papel. Esse mesmo vazio é o que vai permitir que o desenho se torne quadro, ou seja, ele enquadra o olhar em direção ao corpo. Corpo, esse, sem o desenho das partes que o compõem: braço, perna, rosto....Trata-se, portanto, do lugar central do vazio da representação. Vazio da representação do corpo em imagens, vazio da noção de vestimenta, pelos traçados dos moldes que irão compô-las, e vazio de uma história contada agora pela obra da artista, durante o vazio da pandemia.
A possibilidade de incluir o vazio, pelo traço, é o que vai permitir aproximar os diferentes traçados dessa série, numa ligação com o que se visa, no extremo, pela arte da caligrafia chinesa e árabe. Nelas, a arte se encontra na expressão do vazio do traço, sua marca, desde o gesto que lhe dá origem, depois de muitos e muitos traços traçados. Não estamos longe de poder reconhecer que os desenhos e traçados infantis não coincidem com o que se recolhe nessa série, contudo, seria excessivo não dar o devido lugar a experiência da artista com o trabalho que avançou dos traçados infantis, até o cultivo e a dedicação minuciosa dos traços, pela arte.
Afirmei no início que a série, Cava, decote e gancho, veste o olhar, o enquadra. Ao mesmo tempo, ela tambem causa o olhar. Ela causa para olhar os detalhes dos traços, ela causa pela interrogação que suscita: são moldes de costura, é isso mesmo? É portanto, uma série que veste o olhar e o despe de sentido, ao mesmo tempo, refazendo-o pelo acompanhamento dos detalhes. Nesse sentido, somos convidados, a um só tempo, em nos despir e nos reencontrar. Num momento histórico em que o olhar é incessantemente conduzido por vozes que impõem adesão, visibilidade e conquistas, o chamado aos traços cumpre uma função política. Política da escrita. Religando cada um com o que é mais constitutivo, cultivam-se as condições para investir na vida através da insistência na sustentação do humano. Humanidade, essa, cada vez mais difícil de ser traçada pela arte, que não seja pelos seus restos.
Um dos elementos que diferenciam uma obra de arte, é o desejo que despertam para que as olhemos, de tempos em tempos, tendo o prazer de perceber detalhes já vistos, tanto quanto de outros que nos surpreendem.
Mauro Mendes Dias
A série de trabalhos realizada durante a pandemia pela artista Renata Pedrosa, nos apresenta um conjunto de traçados em diferentes cores, feitos com lápis e materiais de desenho e costura para moldes de roupas, que retomam a história da artista com sua mãe, exímia costureira, desde sua infância. Agora, a partir de sua experiência avançada como artista, ela nos surpreende com a possibilidade de reconhecer o sentido preciso do que nomeamos como reinvenção. O que antes foi vivido como participação e contribuição num trabalho à quatro mãos, é atualizado, pelo seu estilo, numa condição de redução dos elementos que compuseram sua história. Já não se trata mais de um trabalho com o objetivo de criação de moldes para a confecção das roupas. A artista opera uma decantação que a conduz aos traços delicados e trabalhosos sobre o papel, cujo produto final é um envoltório para o olhar.
Cava, decote e gancho vestem o olhar: pela fineza dos traços, pela evocação do tempo de trabalho dispendido, pela escolha sensível das cores, assim como, pelo convite que suscitam para se deixar conduzir pelo vazio central que habita cada um dos três. Isso porque, é uma série de trabalhos onde os traços organizam os contornos do corpo. Contudo, se trata de um corpo sem membros, não havendo o desenho de cabeças, braços, pernas, ombros, rostos, mãos, ou sexos... E é exatamente nesse ponto que encontramos a excelência do trabalho simbólico realizado pela artista, uma vez que o material que nos constitue como seres de linguagem, nos permite reconhecer a presença pela ausência. É como se ao olhar para cada um dos trabalhos dessa série, soubéssemos que eles se referem aos elementos que irão nos vestir, não mais como roupas, mas como traços que escrevem e antecipam partes de um corpo por vir. Trata-se, portanto, de uma série que escreve os traços da proto história do corpo, enlaçada pelas marcas dos moldes das vestimentas que um dia irão vesti-lo Existem três pontos constitutivos que merecem especial destaque, principalmente quando recordamos, pela iconografia religiosa, a presença da folha de parreira sobre os corpos de Adão e Eva, depois da expulsão do Paraíso. Constatamos que, pela história cristã, o corpo é representado desde o início com uma presença encobridora, já que se trata de não esquecer do pecado e da culpa por ter desobedecido a Deus e, por isso mesmo, ficar doravante suscetível às tentações e aos suplícios da carne. O que nos leva a admitir que na referência dessa tradição, a qual vai orientar decisivamente a representação imagética ocidental dos corpos, encobertos, ou expostos, irá sempre escapar a presença de um Outro corpo.
Existe uma questão, pouco notada, sobre o tipo de materialidade que se emprega, quando da representação dos corpos, pelas imagens. Não foram muitas, mas não deixaram de ser contundentes, as diferentes experiências que procuraram dar expressão à noção de corpo, sua representação em imagens, de uma forma em que não é coincidente a noção de corpo próprio. Trata-se, da tradição que integra o corpo sem órgãos, de Artaud, o corpo inominável e irrepresentável, de Beckett, a Metamorfose do corpo humano em barata, de Kafka, a mutação do corpo humano em rinoceronte, de Ionesco, os corpos dispersos nas fotografias e postais de Warburg, a experiência íntima com a barata, em Clarice Lispector. No conjunto desses autores, e alguns outros, pode-se reconhecer o desaparecimento da representação habitual do corpo, de forma assegurada. Quando a inconsistência, a mutação e o vazio comparecem como forma de dizer do que acontece com os corpos, é porque não existe mais representação sustentável deles.
Cada um dos autores, do teatro, e da Literatura, procuraram dizer desse Outro corpo, incluindo, por seus textos e experiência, o impossível de dizer dele. Impossível de dizer, segundo a forma pela qual o representamos habitualmente. A materialidade dessa representação de agora é constituída por uma condição simbólica que não se reduz ao sentido. Mais ainda, se trata de incluir nesse impossível da representação, uma forma de dizer em que a identificação se desfaz. Não há como manter uma identificação imaginária com uma barata ou um rinoceronte. Por isso mesmo, a sustentação de si mesmo cai, ou seja, participa-se do absurdo. Esse absurdo é a entrada em cena de uma relação que passa a se estabelecer entre o corpo do leitor e o corpo da barata. A noção de corpo se modifica pela leitura do texto. O surpreendente é constatar que alguns sujeitos compõem seus textos, de dentro dessa condição absurda de ruptura do sentido.
Consideremos que a mudança na noção de representação do corpo em imagens unificadas, para a presença dos corpos sem imagens, ou distorcidas, implica, em primeiro lugar, reconhecer que a imagem unificada não tem duração definitiva e assegurada. Caso contrário, não haveriam as experiências de despersonalização, de estranhamento e recusa do corpo próprio. Quando a imagem corporal, no sentido da imagem do corpo próprio é alterada de forma perturbadora, sem a decisão do sujeito, significa que existe alguma causação inconsciente que se encontra em ação. Em Psicanálise, não se trata de encontrar os motivos, mas sim, de se virar com os acontecimentos. A experiência com o inconsciente nos ensina que não há nenhum sentido a ser revelado, mas o que importa, é poder se virar com as marcas, com os traços que constituiram a história de cada um. E é exatamente nessa tradição que introduz a estruturação dos corpos pelos traços, e não mais pelas imagens, que a série Cava, decote e gancho participa.
O segundo ponto constitutivo dessa série, tem a ver com a função que ocupa o vazio como ponto organizador do quadro. Por um lado, encontramos o vazio como sinonimo dos diferentes espaços deixados em branco. Eles cumprem a função de organizar o olhar através dos traçados que se distribuem pela folha de papel. Esse mesmo vazio é o que vai permitir que o desenho se torne quadro, ou seja, ele enquadra o olhar em direção ao corpo. Corpo, esse, sem o desenho das partes que o compõem: braço, perna, rosto....Trata-se, portanto, do lugar central do vazio da representação. Vazio da representação do corpo em imagens, vazio da noção de vestimenta, pelos traçados dos moldes que irão compô-las, e vazio de uma história contada agora pela obra da artista, durante o vazio da pandemia.
A possibilidade de incluir o vazio, pelo traço, é o que vai permitir aproximar os diferentes traçados dessa série, numa ligação com o que se visa, no extremo, pela arte da caligrafia chinesa e árabe. Nelas, a arte se encontra na expressão do vazio do traço, sua marca, desde o gesto que lhe dá origem, depois de muitos e muitos traços traçados. Não estamos longe de poder reconhecer que os desenhos e traçados infantis não coincidem com o que se recolhe nessa série, contudo, seria excessivo não dar o devido lugar a experiência da artista com o trabalho que avançou dos traçados infantis, até o cultivo e a dedicação minuciosa dos traços, pela arte.
Afirmei no início que a série, Cava, decote e gancho, veste o olhar, o enquadra. Ao mesmo tempo, ela tambem causa o olhar. Ela causa para olhar os detalhes dos traços, ela causa pela interrogação que suscita: são moldes de costura, é isso mesmo? É portanto, uma série que veste o olhar e o despe de sentido, ao mesmo tempo, refazendo-o pelo acompanhamento dos detalhes. Nesse sentido, somos convidados, a um só tempo, em nos despir e nos reencontrar. Num momento histórico em que o olhar é incessantemente conduzido por vozes que impõem adesão, visibilidade e conquistas, o chamado aos traços cumpre uma função política. Política da escrita. Religando cada um com o que é mais constitutivo, cultivam-se as condições para investir na vida através da insistência na sustentação do humano. Humanidade, essa, cada vez mais difícil de ser traçada pela arte, que não seja pelos seus restos.
Um dos elementos que diferenciam uma obra de arte, é o desejo que despertam para que as olhemos, de tempos em tempos, tendo o prazer de perceber detalhes já vistos, tanto quanto de outros que nos surpreendem.
Mauro Mendes Dias








Fulminantes
2024
ArteFASAM Galeria, São Paulo, SP
2024
ArteFASAM Galeria, São Paulo, SP
A escritora Ursula Le Guin constrói uma história da origem da ficção tendo a bolsa como ferramenta principal da evolução narrativa do romance. A bolsa, que serve ao coletar e ao guardar como verbos de ação por excelência, transforma a história da vida contada. Longe do herói, sem o osso ou qualquer outro instrumento longo e pontiagudo, excluem-se verbos associados à dominação como o lutar, o conquistar e o matar.
Dado que a forma da bolsa, da coisa que contêm coisas, emula a forma de órgãos humanos e não humanos que servem função semelhante – o útero, a concha, a fava – proponho que esta sirva de elemento simbólico para pensarmos as obras desta exposição. Lembremos ainda que as bolsas possuem uma forma de “saco” e que, visualmente, esse contentor se parece com tantos outros alimentos, plantas, órgãos (por isso bolsas e sacos são termos utilizados para denominar aspectos internos dos corpos).
Nesta mostra, pinturas, cerâmicas, esculturas, objetos e instalações endereçam corpos humanos e não humanos e suas relações com o entorno, com os tempos e narrativas, com o sexo, com o fazer e o criar. Por vezes, os fragmentos desses corpos geram uma abstração das formas – quase não entendemos o seio ou a mão, descolados do corpo, solitários. Em outras situações, fragmentos e pedaços são reunidos num todo, mesmo que estranho, porém passível de ser compreendido como um ser único.
Essas obras não são apenas intelectualmente provocadoras, mas sensivelmente impactantes, uma vez percebidas pelo tato ótico que nos permite entender aquilo que é mole, macio e tenro. Conseguimos compreendê-las pelo nosso repertório sensível-intuitivo, que conhece essa aparência pelas sensações e experiências que temos ao viver.
Julia Pereira, que me convidou para curar esta exposição, gestualiza cromaticamente corpos e paisagens num processo de identificação entre elementos visualmente semelhantes que geram direções e sentidos para o pincel. Ana Kesselring separa, agrupa e modela pedaços femininos, corais, conchas e restos de animas, distribuindo-os pelas paredes, às vezes como barrigas prenhas, às vezes como colunas evocativas de vestígios arqueológicos pertencentes a civilizações matriarcais. A partir da série “Psicofísicos”, Dora Smék investiga a conexão entre elementos psicológicos e a fisicalidade visceral da anatomia humana, a partir de uma pesquisa dos Testes de Rorschach, cujas imagens se aproximam da anatomia de ossos humanos. Juliana Cerqueira Leite manipula um filme de slides em “Dobra”, cujo resultado são planos azuis com registros confusos dos gestos que produziram o objeto, indicando como o processo de fatura é complexo, variado e diverso. Mariana Manhães reúne bolsas rosas, amarelas e beges preenchidas por espuma e espuma de poliuretano associando-as a um vídeo de animação protagonizado por um ser simpático, mesmo que enigmático, que ganham vida ao chacoalhar um rabo de cascavel. Por fim, Renata Pedrosa costura tecidos macios (como peles de animais), espicha-os e pendura-os, recheia-os ou não, como se fossem meio-móbiles e meio-brinquedos.
Assim, “Fulminantes” é uma exposição com obras de artistas mulheres que manipulam formas orgânicas, cor e materiais gerando objetos-corpos e imagens-corpos. Nelas, o gesto articula pedaços e cria entes de tecido, barro, tinta, luz. Fulminar diz respeito a lançar raios ou a destruir, mas, metaforicamente, também pode significar algo que provoca fortes emoções, sem avisos previamente dados. Remetendo a algo que toma o corpo como uma convulsão, o termo pode ser utilizado para endereçar eventos sublimes da vida, como o nascer e o morrer.
Voltando às palavras de Le Guin a “bolsa/ barriga/ caixa/ casa/ patuá”, essa coisa que contém coisas e nos auxilia a conhecer, criar, cuidar, construir, digerir, parece ser levada em conta pelas artistas desta exposição. É por meio de uma “bolsa de cultura” que Pereira, Smék, Leite, Kesselring, Manhães e Pedrosa produzem arte ao selecionar e agrupar elementos do corpo e do mundo que, juntos, originam objetos ou entes independentes. Estes se voltam a nós, provocando nosso sentido ótico-tátil, estimulando sensações na pele e memórias imaginadas na mente.
Ana Avelar
Dado que a forma da bolsa, da coisa que contêm coisas, emula a forma de órgãos humanos e não humanos que servem função semelhante – o útero, a concha, a fava – proponho que esta sirva de elemento simbólico para pensarmos as obras desta exposição. Lembremos ainda que as bolsas possuem uma forma de “saco” e que, visualmente, esse contentor se parece com tantos outros alimentos, plantas, órgãos (por isso bolsas e sacos são termos utilizados para denominar aspectos internos dos corpos).
Nesta mostra, pinturas, cerâmicas, esculturas, objetos e instalações endereçam corpos humanos e não humanos e suas relações com o entorno, com os tempos e narrativas, com o sexo, com o fazer e o criar. Por vezes, os fragmentos desses corpos geram uma abstração das formas – quase não entendemos o seio ou a mão, descolados do corpo, solitários. Em outras situações, fragmentos e pedaços são reunidos num todo, mesmo que estranho, porém passível de ser compreendido como um ser único.
Essas obras não são apenas intelectualmente provocadoras, mas sensivelmente impactantes, uma vez percebidas pelo tato ótico que nos permite entender aquilo que é mole, macio e tenro. Conseguimos compreendê-las pelo nosso repertório sensível-intuitivo, que conhece essa aparência pelas sensações e experiências que temos ao viver.
Julia Pereira, que me convidou para curar esta exposição, gestualiza cromaticamente corpos e paisagens num processo de identificação entre elementos visualmente semelhantes que geram direções e sentidos para o pincel. Ana Kesselring separa, agrupa e modela pedaços femininos, corais, conchas e restos de animas, distribuindo-os pelas paredes, às vezes como barrigas prenhas, às vezes como colunas evocativas de vestígios arqueológicos pertencentes a civilizações matriarcais. A partir da série “Psicofísicos”, Dora Smék investiga a conexão entre elementos psicológicos e a fisicalidade visceral da anatomia humana, a partir de uma pesquisa dos Testes de Rorschach, cujas imagens se aproximam da anatomia de ossos humanos. Juliana Cerqueira Leite manipula um filme de slides em “Dobra”, cujo resultado são planos azuis com registros confusos dos gestos que produziram o objeto, indicando como o processo de fatura é complexo, variado e diverso. Mariana Manhães reúne bolsas rosas, amarelas e beges preenchidas por espuma e espuma de poliuretano associando-as a um vídeo de animação protagonizado por um ser simpático, mesmo que enigmático, que ganham vida ao chacoalhar um rabo de cascavel. Por fim, Renata Pedrosa costura tecidos macios (como peles de animais), espicha-os e pendura-os, recheia-os ou não, como se fossem meio-móbiles e meio-brinquedos.
Assim, “Fulminantes” é uma exposição com obras de artistas mulheres que manipulam formas orgânicas, cor e materiais gerando objetos-corpos e imagens-corpos. Nelas, o gesto articula pedaços e cria entes de tecido, barro, tinta, luz. Fulminar diz respeito a lançar raios ou a destruir, mas, metaforicamente, também pode significar algo que provoca fortes emoções, sem avisos previamente dados. Remetendo a algo que toma o corpo como uma convulsão, o termo pode ser utilizado para endereçar eventos sublimes da vida, como o nascer e o morrer.
Voltando às palavras de Le Guin a “bolsa/ barriga/ caixa/ casa/ patuá”, essa coisa que contém coisas e nos auxilia a conhecer, criar, cuidar, construir, digerir, parece ser levada em conta pelas artistas desta exposição. É por meio de uma “bolsa de cultura” que Pereira, Smék, Leite, Kesselring, Manhães e Pedrosa produzem arte ao selecionar e agrupar elementos do corpo e do mundo que, juntos, originam objetos ou entes independentes. Estes se voltam a nós, provocando nosso sentido ótico-tátil, estimulando sensações na pele e memórias imaginadas na mente.
Ana Avelar






Métrica Imprecisa
2023
Casa da Cultura do Parque, São Paulo, SP
2023
Casa da Cultura do Parque, São Paulo, SP
Atualmente, pode-se dizer que já é tradição do pensamento sobre arte brasileira a ideia de uma “geometria sensível”, que aceita arestas adocicadas, a presença da mão que distorce ou hesita e a frouxidão da estrutura. Sua presença foi até mesmo observada por comentadores na arte colonial, sendo que, assim, essa geometria passava a oferecer um lastro para a arte produzida no período moderno e no atual.
Em outras palavras, nossa crítica de arte encontrou uma geometria intuitiva em diversos períodos da produção artística, como se constituísse mesmo um traço construtivo específico e característico.
O termo é histórico, tendo sido utilizado para caracterizar uma geometria intuitiva vista como dominante em toda América Latina, a partir da segunda metade do século XX. Entre os intérpretes brasileiros que mais exploraram essa ideia, destaca-se o crítico Roberto Pontual, que fez uso do termo para designar a abstração geométrica latino-americana presente numa exposição homônima realizada em 1978, pela qual foi responsável.
Para Pontual, a “geometria sensível” reunia opostos apenas aparentemente inconciliáveis: “geometria supõe cálculo, frieza, determinação, rigor, exercício da razão; sensível sugere imprevisibilidade, animação, alternância, indeterminação, prática intuitiva”. Entretanto, destaca que “essas polaridades jamais se projetam com absoluta nitidez e pureza na obra de arte, e, segundo, que nada prova a superioridade imanente de um caminho sobre o outro”. Sendo a "sensível" uma das vias da geometria, a outra seria a “programada”[1] .
Nesse sentido, esse construtivismo tipicamente latino-americano, como defendia Pontual, tornou-se compreensão difundida, orientando o pensamento sobre arte latino-americana desenvolvido em torno da arte contemporânea. Nesta exposição, a métrica imprecisa surge simbólica, admitindo narrativas negadas pelo formalismo. Vejo a geometria recolhida da vida; o que muda é a presença de conteúdos sensíveis ou conceituais a partir do construtivo.
Emprestando a ideia do filósofo Ernst Cassirer, de que, como forma simbólica, a arte revela a realidade e não a imita[2], nesta exposição encontram-se quatro artistas costurados pela geometria de suas pesquisas; no entanto, é pela estratégia do uso simbólico das formas que este grupo se articula internamente.
Ana Mazzei reúne animal e arquitetura, ambos em sua fragilidade material e sutileza formal. Faltam arestas para completar os quadrados, que me levam a imaginar a serpente rastejando nessa virtualidade espacial. Ao mesmo tempo, é plausível a leitura da cobra como signo da regeneração, ao ser associada ao deus Asclepius, imagem aliás emprestada pela área médica.
Na Grécia Antiga, acreditava-se que cobras habitavam o labirinto do templo de Epidaurus, principal local de atendimento, tanto espiritual como médico, de fiéis. Nesse contexto, o animal adquire um sentido positivo associado à sugestão de profecias relativas à cura, que vinham aos enfermos por meio de sonhos. Aliás, ex-votos de partes enfermas do corpo eram deixados no templo, guiando-nos à entrada para a pesquisa de outra artista da mostra, Renata Pedrosa.
Pedrosa investiga a relação entre nosso corpo e o ambiente, seja em situações individuais ou coletivas. Essa pesquisa arquitetônica, corpo-construção, pode mostrar-se sob a forma de uma cruz de tecido com uma pedra que parece pesar sobre ela, mas que, se olhada de perto, revela ser papel e grafite. Sob a cruz, vaza o carvão, naquilo que traz do vestígio da queima da madeira o mesmo material reconhecidamente utilizado na manufatura de cruzes.
Não me esqueço ainda de que o carvão filtra e absorve impurezas. Em outro trabalho, a construção é semelhante — um objeto-casa de brinquedo parece pesar sobre um retalho de tecido. Em ambos, canutilhos bordados destacam as bordas do tecido, trazendo-o para um lugar da intimidade.
O fio que os trabalhos de Pedrosa, esticam-se em linhas paralelas do “Quadro duplo reflexivo”, de Débora Bolsoni. De mesma espessura, mas em diferentes comprimentos, as linhas projetam sombras, criando objetos virtuais. Títulos são relevantes nas obras de Bolsoni porque a artista opera jogos de sentido pela linguagem e pela forma.
Assim, em “Body”, uma forma sextavada metade grade dourada, metade areia, recebe margens sutis da cor rosa que sugerem aquelas dedicadas a esportes coletivos nas praias brasileiras. O corpo está ali, entre os portões dos edifícios de Ipanema e o mar, habitando entre as desigualdades urbanas.
É pelo rosa que chegamos às bandeiras latino-americanas e caribenhas inventadas pelo artista guatemalteco Esvin Alarcón Lam. A codificação cromática de gênero – representada principalmente pela oposição entre rosa e azul – implicava numa divisão social binária, já denunciada por movimentos feministas e queer, entre as décadas de 1960 e 1970.
Como se sabe, a apropriação da cor rosa pelos movimentos LGBTQIA+ visou uma forma de resistência a essa divisão, dado que a cor foi utilizada pelo nazismo para distinguir prisioneiros no campo de concentração. “Amarica” era o título da primeira instalação com as bandeiras rosa, que propunha subverter as identidades nacionais totalizadoras e excludentes no continente; a bandeira estadunidense completava a série. Nesta mostra, Lam restabelece sua pesquisa sobre identidades americanas contemporâneas, adicionando ainda outros geometrismos como estampas simbólicas.
É nessa perspectiva construtiva — um termo que nos aproxima da arquitetura rigorosa em sua ortogonalidade — e, ao mesmo tempo, inexata, instável, inabsoluta na realidade social de nossos espaços de vida, que esta exposição ganha corpo. Não gratuitamente lanço mão do termo “forma” diversas vezes ao longo do texto — a forma é corpo, a construção é sociedade.
Quando o construtivismo se aproximou da máquina, a ponto de esquecer-se da mão, resultou ultrapassado. A arte contemporânea devolveu à geometria um sentido simbólico diferente, mas também familiar àquele que guardava a magia e o encantamento em suas versões originárias e arcaicas[3].
Nesse sentido, a figura simbólica de Torres García defendeu a geometria intuitiva na América Latina como via de integração das culturas locais. Nas métricas imprecisas, há espaço para réguas singulares e heterogêneas, frequentemente contemplando conteúdos intelectuais ou sensíveis. Animal symbolicum, nas palavras de Cassirer, somos nós diante do mundo e seus fenômenos.
Ana Avelar
[1] PONTUAL, Roberto. “Do mundo, a América Latina. Entre as geometrias, a sensível”. In: América Latina: Geometria Sensível. Rio de Janeiro: Edições Jornal do Brasil, 1978, p.8-9.
[2] FURLANETTO, Beatriz Helena. “A Arte como Forma Simbólica”, Revista Científica / FAP, Curitiba, v. 9, p. 36-50, jan./jun. 2012.
[3] GELL, Alfred. “The technology of enchantment and the enchantment of technology”. In: COOTE, Jeremy (org.). Anthropology, Art, and Aesthetics. Oxford: Clarendon Press, 1994.
Em outras palavras, nossa crítica de arte encontrou uma geometria intuitiva em diversos períodos da produção artística, como se constituísse mesmo um traço construtivo específico e característico.
O termo é histórico, tendo sido utilizado para caracterizar uma geometria intuitiva vista como dominante em toda América Latina, a partir da segunda metade do século XX. Entre os intérpretes brasileiros que mais exploraram essa ideia, destaca-se o crítico Roberto Pontual, que fez uso do termo para designar a abstração geométrica latino-americana presente numa exposição homônima realizada em 1978, pela qual foi responsável.
Para Pontual, a “geometria sensível” reunia opostos apenas aparentemente inconciliáveis: “geometria supõe cálculo, frieza, determinação, rigor, exercício da razão; sensível sugere imprevisibilidade, animação, alternância, indeterminação, prática intuitiva”. Entretanto, destaca que “essas polaridades jamais se projetam com absoluta nitidez e pureza na obra de arte, e, segundo, que nada prova a superioridade imanente de um caminho sobre o outro”. Sendo a "sensível" uma das vias da geometria, a outra seria a “programada”[1] .
Nesse sentido, esse construtivismo tipicamente latino-americano, como defendia Pontual, tornou-se compreensão difundida, orientando o pensamento sobre arte latino-americana desenvolvido em torno da arte contemporânea. Nesta exposição, a métrica imprecisa surge simbólica, admitindo narrativas negadas pelo formalismo. Vejo a geometria recolhida da vida; o que muda é a presença de conteúdos sensíveis ou conceituais a partir do construtivo.
Emprestando a ideia do filósofo Ernst Cassirer, de que, como forma simbólica, a arte revela a realidade e não a imita[2], nesta exposição encontram-se quatro artistas costurados pela geometria de suas pesquisas; no entanto, é pela estratégia do uso simbólico das formas que este grupo se articula internamente.
Ana Mazzei reúne animal e arquitetura, ambos em sua fragilidade material e sutileza formal. Faltam arestas para completar os quadrados, que me levam a imaginar a serpente rastejando nessa virtualidade espacial. Ao mesmo tempo, é plausível a leitura da cobra como signo da regeneração, ao ser associada ao deus Asclepius, imagem aliás emprestada pela área médica.
Na Grécia Antiga, acreditava-se que cobras habitavam o labirinto do templo de Epidaurus, principal local de atendimento, tanto espiritual como médico, de fiéis. Nesse contexto, o animal adquire um sentido positivo associado à sugestão de profecias relativas à cura, que vinham aos enfermos por meio de sonhos. Aliás, ex-votos de partes enfermas do corpo eram deixados no templo, guiando-nos à entrada para a pesquisa de outra artista da mostra, Renata Pedrosa.
Pedrosa investiga a relação entre nosso corpo e o ambiente, seja em situações individuais ou coletivas. Essa pesquisa arquitetônica, corpo-construção, pode mostrar-se sob a forma de uma cruz de tecido com uma pedra que parece pesar sobre ela, mas que, se olhada de perto, revela ser papel e grafite. Sob a cruz, vaza o carvão, naquilo que traz do vestígio da queima da madeira o mesmo material reconhecidamente utilizado na manufatura de cruzes.
Não me esqueço ainda de que o carvão filtra e absorve impurezas. Em outro trabalho, a construção é semelhante — um objeto-casa de brinquedo parece pesar sobre um retalho de tecido. Em ambos, canutilhos bordados destacam as bordas do tecido, trazendo-o para um lugar da intimidade.
O fio que os trabalhos de Pedrosa, esticam-se em linhas paralelas do “Quadro duplo reflexivo”, de Débora Bolsoni. De mesma espessura, mas em diferentes comprimentos, as linhas projetam sombras, criando objetos virtuais. Títulos são relevantes nas obras de Bolsoni porque a artista opera jogos de sentido pela linguagem e pela forma.
Assim, em “Body”, uma forma sextavada metade grade dourada, metade areia, recebe margens sutis da cor rosa que sugerem aquelas dedicadas a esportes coletivos nas praias brasileiras. O corpo está ali, entre os portões dos edifícios de Ipanema e o mar, habitando entre as desigualdades urbanas.
É pelo rosa que chegamos às bandeiras latino-americanas e caribenhas inventadas pelo artista guatemalteco Esvin Alarcón Lam. A codificação cromática de gênero – representada principalmente pela oposição entre rosa e azul – implicava numa divisão social binária, já denunciada por movimentos feministas e queer, entre as décadas de 1960 e 1970.
Como se sabe, a apropriação da cor rosa pelos movimentos LGBTQIA+ visou uma forma de resistência a essa divisão, dado que a cor foi utilizada pelo nazismo para distinguir prisioneiros no campo de concentração. “Amarica” era o título da primeira instalação com as bandeiras rosa, que propunha subverter as identidades nacionais totalizadoras e excludentes no continente; a bandeira estadunidense completava a série. Nesta mostra, Lam restabelece sua pesquisa sobre identidades americanas contemporâneas, adicionando ainda outros geometrismos como estampas simbólicas.
É nessa perspectiva construtiva — um termo que nos aproxima da arquitetura rigorosa em sua ortogonalidade — e, ao mesmo tempo, inexata, instável, inabsoluta na realidade social de nossos espaços de vida, que esta exposição ganha corpo. Não gratuitamente lanço mão do termo “forma” diversas vezes ao longo do texto — a forma é corpo, a construção é sociedade.
Quando o construtivismo se aproximou da máquina, a ponto de esquecer-se da mão, resultou ultrapassado. A arte contemporânea devolveu à geometria um sentido simbólico diferente, mas também familiar àquele que guardava a magia e o encantamento em suas versões originárias e arcaicas[3].
Nesse sentido, a figura simbólica de Torres García defendeu a geometria intuitiva na América Latina como via de integração das culturas locais. Nas métricas imprecisas, há espaço para réguas singulares e heterogêneas, frequentemente contemplando conteúdos intelectuais ou sensíveis. Animal symbolicum, nas palavras de Cassirer, somos nós diante do mundo e seus fenômenos.
Ana Avelar
[1] PONTUAL, Roberto. “Do mundo, a América Latina. Entre as geometrias, a sensível”. In: América Latina: Geometria Sensível. Rio de Janeiro: Edições Jornal do Brasil, 1978, p.8-9.
[2] FURLANETTO, Beatriz Helena. “A Arte como Forma Simbólica”, Revista Científica / FAP, Curitiba, v. 9, p. 36-50, jan./jun. 2012.
[3] GELL, Alfred. “The technology of enchantment and the enchantment of technology”. In: COOTE, Jeremy (org.). Anthropology, Art, and Aesthetics. Oxford: Clarendon Press, 1994.






Pedra Terra Prata
2022
Massapê Projetos, São Paulo, SP
2022
Massapê Projetos, São Paulo, SP
com Laila Terra
A “Terra da Garoa” já não faz jus à alcunha – se solidifica cada vez mais como “selva de pedra” (des)montada em fragmentos de asfalto, tijolo, poluição e violência. “Aqui tudo parece que era ainda construção, mas já é ruína”, expressou, acertadamente, Caetano. Cada novo empreendimento imobiliário, com sua promessa de melhoria para poucos, deixa um rastro (especialmente nas regiões mais valorizadas pelas construtoras) de desigualdade e gentrificação, somando-se às outras mazelas crônicas da cidade. Em contraposição, esta metrópole problemática suscita poéticas - a arte, sempre atenta ao que se dá no espaço-tempo da vida vivida, se contamina, deglute e devolve formas, provocação e, também (desde que nos deixemos afetar), deleite. Da pedra, da terra e da prata pode-se fazer a guerra, o isolamento ou a desigualdade, mas também a ponte, o alimento e a joia.
Massapê é terra fértil para o desenvolvimento de culturas que, no campo, produzem alimentos e aqui, neste celeiro urbano de projetos artísticos, nutrem o intelecto. Nas imediações, fervilham bares, lojas e oficinas e circulam os mais variados tipos de pessoas. Neste espaço aberto para a rua, Renata Pedrosa instala seu radar, que tanto capta o fora, como amplifica o que se cria do lado de dentro, convidando a trocas desierarquizadas de saberes. Laila Terra constrói sua rampa ancorada pela taipa, tão característica dos modos construtivos tradicionais do território local e que foi substituída por sistemas massificados, massacrantes e excludentes. Em trabalho conjunto, reúnem lambes com imagens de pedras (que tendemos a imaginar como imutáveis e, portanto, conhecíveis) e grafismos que não podemos decifrar – um arranjo paradoxal, como São Paulo.
Renata investiga os fluxos do espaço público e os comportamentos dos grupos sociais por uma perspectiva sagaz, traduzindo suas inquietações em desenhos expandidos para diferentes linguagens. Do carvão à cerâmica, das instalações com materiais moles à videoarte, arquiteta composições conceitualmente complexas e formalmente elegantes. Há muito mais camadas de significado em seus trabalhos do que pode parecer à primeira visada.
Para Laila, o processo criativo é a própria obra. Embora parta de um sólido arcabouço teórico, é no fazer que ela exercita as possibilidades de materialização de ideias, levando em conta os fluxos de obtenção dos materiais e mesmo as relações com outros profissionais direta ou indiretamente envolvidos no resultado.
Ambas enxergam o ofício de artista como indissociável de suas realidades, não apenas como indivíduos, mas também dentro do contexto histórico, político e social no qual estão inseridas. A atenção às dinâmicas da vida é permanente e é com este pensamento sistêmico, aliado a suas preocupações com temas que lhes são caros, como a emergência climática, as desigualdades sociais, a ascensão de ideologias autoritárias e violências raciais e de gênero que elas se conduzem. Seus trabalhos são apenas um lembrete tangível de pesquisas e ações que são alavancadas por e destinadas ao que se dá do lado de fora do sistema da arte. É na rua que toda mudança começa.
Sylvia Werneck
A “Terra da Garoa” já não faz jus à alcunha – se solidifica cada vez mais como “selva de pedra” (des)montada em fragmentos de asfalto, tijolo, poluição e violência. “Aqui tudo parece que era ainda construção, mas já é ruína”, expressou, acertadamente, Caetano. Cada novo empreendimento imobiliário, com sua promessa de melhoria para poucos, deixa um rastro (especialmente nas regiões mais valorizadas pelas construtoras) de desigualdade e gentrificação, somando-se às outras mazelas crônicas da cidade. Em contraposição, esta metrópole problemática suscita poéticas - a arte, sempre atenta ao que se dá no espaço-tempo da vida vivida, se contamina, deglute e devolve formas, provocação e, também (desde que nos deixemos afetar), deleite. Da pedra, da terra e da prata pode-se fazer a guerra, o isolamento ou a desigualdade, mas também a ponte, o alimento e a joia.
Massapê é terra fértil para o desenvolvimento de culturas que, no campo, produzem alimentos e aqui, neste celeiro urbano de projetos artísticos, nutrem o intelecto. Nas imediações, fervilham bares, lojas e oficinas e circulam os mais variados tipos de pessoas. Neste espaço aberto para a rua, Renata Pedrosa instala seu radar, que tanto capta o fora, como amplifica o que se cria do lado de dentro, convidando a trocas desierarquizadas de saberes. Laila Terra constrói sua rampa ancorada pela taipa, tão característica dos modos construtivos tradicionais do território local e que foi substituída por sistemas massificados, massacrantes e excludentes. Em trabalho conjunto, reúnem lambes com imagens de pedras (que tendemos a imaginar como imutáveis e, portanto, conhecíveis) e grafismos que não podemos decifrar – um arranjo paradoxal, como São Paulo.
Renata investiga os fluxos do espaço público e os comportamentos dos grupos sociais por uma perspectiva sagaz, traduzindo suas inquietações em desenhos expandidos para diferentes linguagens. Do carvão à cerâmica, das instalações com materiais moles à videoarte, arquiteta composições conceitualmente complexas e formalmente elegantes. Há muito mais camadas de significado em seus trabalhos do que pode parecer à primeira visada.
Para Laila, o processo criativo é a própria obra. Embora parta de um sólido arcabouço teórico, é no fazer que ela exercita as possibilidades de materialização de ideias, levando em conta os fluxos de obtenção dos materiais e mesmo as relações com outros profissionais direta ou indiretamente envolvidos no resultado.
Ambas enxergam o ofício de artista como indissociável de suas realidades, não apenas como indivíduos, mas também dentro do contexto histórico, político e social no qual estão inseridas. A atenção às dinâmicas da vida é permanente e é com este pensamento sistêmico, aliado a suas preocupações com temas que lhes são caros, como a emergência climática, as desigualdades sociais, a ascensão de ideologias autoritárias e violências raciais e de gênero que elas se conduzem. Seus trabalhos são apenas um lembrete tangível de pesquisas e ações que são alavancadas por e destinadas ao que se dá do lado de fora do sistema da arte. É na rua que toda mudança começa.
Sylvia Werneck







