Pedra Terra Prata
2022
Massapê Projetos, São Paulo, SP
2022
Massapê Projetos, São Paulo, SP
com Laila Terra
A “Terra da Garoa” já não faz jus à alcunha – se solidifica cada vez mais como “selva de pedra” (des)montada em fragmentos de asfalto, tijolo, poluição e violência. “Aqui tudo parece que era ainda construção, mas já é ruína”, expressou, acertadamente, Caetano. Cada novo empreendimento imobiliário, com sua promessa de melhoria para poucos, deixa um rastro (especialmente nas regiões mais valorizadas pelas construtoras) de desigualdade e gentrificação, somando-se às outras mazelas crônicas da cidade. Em contraposição, esta metrópole problemática suscita poéticas - a arte, sempre atenta ao que se dá no espaço-tempo da vida vivida, se contamina, deglute e devolve formas, provocação e, também (desde que nos deixemos afetar), deleite. Da pedra, da terra e da prata pode-se fazer a guerra, o isolamento ou a desigualdade, mas também a ponte, o alimento e a joia.
Massapê é terra fértil para o desenvolvimento de culturas que, no campo, produzem alimentos e aqui, neste celeiro urbano de projetos artísticos, nutrem o intelecto. Nas imediações, fervilham bares, lojas e oficinas e circulam os mais variados tipos de pessoas. Neste espaço aberto para a rua, Renata Pedrosa instala seu radar, que tanto capta o fora, como amplifica o que se cria do lado de dentro, convidando a trocas desierarquizadas de saberes. Laila Terra constrói sua rampa ancorada pela taipa, tão característica dos modos construtivos tradicionais do território local e que foi substituída por sistemas massificados, massacrantes e excludentes. Em trabalho conjunto, reúnem lambes com imagens de pedras (que tendemos a imaginar como imutáveis e, portanto, conhecíveis) e grafismos que não podemos decifrar – um arranjo paradoxal, como São Paulo.
Renata investiga os fluxos do espaço público e os comportamentos dos grupos sociais por uma perspectiva sagaz, traduzindo suas inquietações em desenhos expandidos para diferentes linguagens. Do carvão à cerâmica, das instalações com materiais moles à videoarte, arquiteta composições conceitualmente complexas e formalmente elegantes. Há muito mais camadas de significado em seus trabalhos do que pode parecer à primeira visada.
Para Laila, o processo criativo é a própria obra. Embora parta de um sólido arcabouço teórico, é no fazer que ela exercita as possibilidades de materialização de ideias, levando em conta os fluxos de obtenção dos materiais e mesmo as relações com outros profissionais direta ou indiretamente envolvidos no resultado.
Ambas enxergam o ofício de artista como indissociável de suas realidades, não apenas como indivíduos, mas também dentro do contexto histórico, político e social no qual estão inseridas. A atenção às dinâmicas da vida é permanente e é com este pensamento sistêmico, aliado a suas preocupações com temas que lhes são caros, como a emergência climática, as desigualdades sociais, a ascensão de ideologias autoritárias e violências raciais e de gênero que elas se conduzem. Seus trabalhos são apenas um lembrete tangível de pesquisas e ações que são alavancadas por e destinadas ao que se dá do lado de fora do sistema da arte. É na rua que toda mudança começa.
Sylvia Werneck
A “Terra da Garoa” já não faz jus à alcunha – se solidifica cada vez mais como “selva de pedra” (des)montada em fragmentos de asfalto, tijolo, poluição e violência. “Aqui tudo parece que era ainda construção, mas já é ruína”, expressou, acertadamente, Caetano. Cada novo empreendimento imobiliário, com sua promessa de melhoria para poucos, deixa um rastro (especialmente nas regiões mais valorizadas pelas construtoras) de desigualdade e gentrificação, somando-se às outras mazelas crônicas da cidade. Em contraposição, esta metrópole problemática suscita poéticas - a arte, sempre atenta ao que se dá no espaço-tempo da vida vivida, se contamina, deglute e devolve formas, provocação e, também (desde que nos deixemos afetar), deleite. Da pedra, da terra e da prata pode-se fazer a guerra, o isolamento ou a desigualdade, mas também a ponte, o alimento e a joia.
Massapê é terra fértil para o desenvolvimento de culturas que, no campo, produzem alimentos e aqui, neste celeiro urbano de projetos artísticos, nutrem o intelecto. Nas imediações, fervilham bares, lojas e oficinas e circulam os mais variados tipos de pessoas. Neste espaço aberto para a rua, Renata Pedrosa instala seu radar, que tanto capta o fora, como amplifica o que se cria do lado de dentro, convidando a trocas desierarquizadas de saberes. Laila Terra constrói sua rampa ancorada pela taipa, tão característica dos modos construtivos tradicionais do território local e que foi substituída por sistemas massificados, massacrantes e excludentes. Em trabalho conjunto, reúnem lambes com imagens de pedras (que tendemos a imaginar como imutáveis e, portanto, conhecíveis) e grafismos que não podemos decifrar – um arranjo paradoxal, como São Paulo.
Renata investiga os fluxos do espaço público e os comportamentos dos grupos sociais por uma perspectiva sagaz, traduzindo suas inquietações em desenhos expandidos para diferentes linguagens. Do carvão à cerâmica, das instalações com materiais moles à videoarte, arquiteta composições conceitualmente complexas e formalmente elegantes. Há muito mais camadas de significado em seus trabalhos do que pode parecer à primeira visada.
Para Laila, o processo criativo é a própria obra. Embora parta de um sólido arcabouço teórico, é no fazer que ela exercita as possibilidades de materialização de ideias, levando em conta os fluxos de obtenção dos materiais e mesmo as relações com outros profissionais direta ou indiretamente envolvidos no resultado.
Ambas enxergam o ofício de artista como indissociável de suas realidades, não apenas como indivíduos, mas também dentro do contexto histórico, político e social no qual estão inseridas. A atenção às dinâmicas da vida é permanente e é com este pensamento sistêmico, aliado a suas preocupações com temas que lhes são caros, como a emergência climática, as desigualdades sociais, a ascensão de ideologias autoritárias e violências raciais e de gênero que elas se conduzem. Seus trabalhos são apenas um lembrete tangível de pesquisas e ações que são alavancadas por e destinadas ao que se dá do lado de fora do sistema da arte. É na rua que toda mudança começa.
Sylvia Werneck
Lampejo
2019
Galeria Virgilio, São Paulo, SP
2019
Galeria Virgilio, São Paulo, SP
Claudio Matsuno e Renata Pedrosa
Curadoria Leandro Muniz
Leandro Muniz - Gostaria de começar perguntando de onde veio a ideia para esta exposição.
Renata Pedrosa - Da minha parte, veio do desejo de criar uma situação diferente das experiências anteriores de exposições individuais na Virgílio; que desta vez a exposição proporcionasse encontros e trocas, como o que está acontecendo aqui agora.
Claudio Matsuno - Durante uma conversa com a Renata, ela sugeriu apresentar duas individuais simultâneas no mesmo espaço e aceitei na hora. Gosto dessa ideia de experimentar outras possibilidades e sair da zona de conforto ao encarar o espaço expositivo em conjunto.
LM - Uma das propostas é sublinhar que se trata de uma exposição em dupla ou de duas individuais simultâneas pensadas para o mesmo lugar. Isto fica claro na decisão de mostrar os trabalhos em cantos opostos da galeria, enfatizando as duas colunas que dividem o espaço, ao construir um banco que é ao mesmo tempo um objeto funcional e um elemento que reitera a ideia de diálogo. Além de trabalhos recentes, também propomos mostrar obras de outros períodos da produção de vocês. Gostaria que vocês comentassem o interesse por manter essas decisões.
RP - Gosto da ideia de criar uma diagonal no espaço e também da concentração de materiais em pontos específicos da sala. Mostrar obras de outros períodos é algo incomum para exposições individuais em galerias - geralmente mostra-se o que há de mais recente na produção dos artistas -, mas é uma questão que surgiu em nossas conversas e isso proporcionou uma revisão do meu percurso.
CM - Eu já havia pensado em mostrar trabalhos anteriores de cinco, dez ou quinze anos atrás ao lado de outros recentes. Para mim, esse tempo que parece longo, na verdade é curto dentro do processo de trabalho e até insuficiente para destacar uma mudança de postura efetiva dentro da produção. Embora meus trabalhos tenham formalizações muito distintas, me interessa sobretudo procurar pontos em comum entre os antigos e os novos. Agora, em companhia de outra artista no mesmo espaço, são possíveis outras leituras e discussões que, talvez, individualmente não fossem tão claras.
LM - A forma atomizada de expor os trabalhos na parede, além do título da mostra e da imagem usada na divulgação reforçam a sensação e a ideia de dispersão, que também parece ser um modus operandino trabalho de vocês - há uma diversidade grande de materiais e procedimentos ao longo do tempo, sem necessariamente uma continuidade direta entre um trabalho e outro, além disso, são recorrentes formas que sugerem dispersão em ambas as práticas. Como vocês pensam a ideia de dispersão em suas práticas em relação ao modo como os trabalhos são dispostos nesta exposição?
RP -Já havia comentado anteriormente sobre o interesse tanto nos aspectos propositivos da experiência de dispersão - experimentação, descoberta, devaneio - quanto naqueles que podem ser contra produtivos - falta de foco, incapacidade de concentração etc.(1) A ideia de dispersão me auxiliou no entendimento de questões sobre meu processo como a simultaneidade da representação e da apresentação; como o que faço hoje conecta-se com minha produção de há vinte anos atrás; dúvidas e incertezas que persistem ao longo do tempo; como o desejo de fazer está sempre intercalado por questionamentos sobre porque fazer; e como as mesmas ideias podem se manifestar em diversas linguagens e materiais.
CM - Eu procuro trabalhar com materiais com os quais nos deparamos no dia a dia. Meu ateliê é no centro de São Paulo e uso uma série de objetos apropriados ou comprados naquela região. A variedade de estímulos na cidade, gera uma experiência dispersiva que é, de algum modo, replicada no trabalho.
LM - Ambas as produções lidam com desdobramentos de uma ideia geral de “desenho” - seja o modo como o Cláudio dispõe objetos apropriados e assemblagesna parede ou nas formas orgânicas dos trabalhos em tecido da Renata, que sugerem um efeito gráfico pelo contraste entre os diversos tons de preto em relação ao branco da parede. Em ambos, um pensamento sobre a forma e a linha - que é a oposição clássica do desenho em relação à cor, embora isso possa ser facilmente contestado - parece predominar. Como vocês pensam o desenho em relação aos diversos materiais e procedimentos dos trabalhos?
RP - O desenho está presente do começo ao fim, seja o desenho como tentativa de materialização de acontecimentos sociais - como as transformações na ocupação da cidade - ou o desenho para além do lápis sobre o papel, como índice da ação humana - que pode ir de uma pegada na areia à marca de um corpo no lençol da cama - os rastros que são deixados pelos movimentos empreendidos pelas construções manuais.Essa pergunta me lembrou de um trecho do texto "Desenho e emancipação" de Flávio Motta: "Bem sabemos que a palavra 'desenho' tem, originariamente, um compromisso com a palavra 'desígnio'. Ambas se identificavam. Na medida em que restabelecermos, efetivamente, os vínculos entre as duas palavras, estaremos também recuperando a capacidade de influir no rumo do nosso viver. Assim, o desenho se aproximará da noção de Projeto (pro-jet), de uma espécie de lançar-se para a frente, incessantemente, movido por uma 'preocupação'". Me interessa, sobretudo, essa ideia de lançar-se para frente, incessantemente, movido por uma "preocupação" pois é assim que entendo o processo de produção dos trabalhos.
CM - Desde os primeiros trabalhos até hoje, o desenho e a pintura são os centros da minha produção. A maneira de apresentar pode sofrer alguma mudança, mas eles estão sempre lá, talvez não no sentido tradicional, mas quando desenvolvo trabalhos que envolvem objetos simples como cadarços, restos de calçados ou papelão, existe um pensamento intenso do desenho e de pintura, por serem composições que movimentam formas, cores e linhas articuladas por um pensamento plástico.
LM - A precariedade dos materiais é um ponto comum entre os trabalhos. Isso pode ser um aspecto propositivo, se pensarmos em um sentido de do it yourselfem que você trabalha com o que tem independentemente da situação, mas também pode ser problemático, se pensarmos na “estetização” e no “elogio” da precariedade. Como vocês pensam isso tanto em relação ao contexto da arte quanto do mundo atualmente?
RP - O sentido de "faça você mesmo" é o de transformar a matéria com as próprias mãos; experimentar, hesitar, fazer e desfazer; entrar num embate com o material sem estar certo do resultado. Para isso, escolho materiais que se prestam à manipulação e transformação mais direta, sem muitas exigências tecnológicas. Sem dúvida existe aí um risco de elogio à precariedade, uma reificação, mas isso é inerente a qualquer tentativa de denúncia de um dado estado: ao se "performar" o que se denuncia acaba-se por afirmar o que se busca negar.
CM - Eu tento não hierarquizar os materiais com os quais vou trabalhar, tentando, de algum modo, manipular uma bexiga ou uma moldura como se fossem cores e linhas, independentemente do valor desses materiais.Se um artista tem um ateliê com o espaço limitado, ele vai procurar se adaptar a ele para construir suas ideias e o mesmo acontece com o uso dos materiais. Creio que o artista trabalha com o que se depara, antes de qualquer outra coisa.
LM - Outro assunto que me chama a atenção na relação entre suas produções é a cidade - no trabalho da Renata como representação e no do Cláudio como resíduo. Vocês poderiam comentar a relação entre cidade x representação e cidade x resíduo?
RP - Tenho muito interesse pelas formas de representação da cidade. Por exemplo, os trabalhos da série "Arquiteturas Distópicas", presentes nesta exposição, têm como ponto de partida a imagem da capa do livro "Delirious New York" de Rem Koolhaas .Naquela imagem me chamou a atenção, sobretudo, o antropomorfismo dos ícones arquitetônicos, algo que busquei levar para os trabalhos. Não é a primeira vez que estabeleço uma relação entre edifícios ou imagens icônicas de NY e SP: no trabalho "Estaiada" (2012) criei uma justaposição entre um vídeo que mostra a sobreposição de desenhos da Ponte Octavio Frias de Oliveira e trechos da reconstituição da travessia de Philippe Petit numa corda bamba esticada entre as torres gêmeas do World Trade Center em 1974. Naquele momento, mais do que a associação formal entre as linhas do desenho da ponte e a corda do equilibrista, me interessava confrontar imagens espetaculares de ambos os cenários.
CM - Como comentei anteriormente, o que me chega em mãos vem da cidade, onde vivo e tenho minhas atividades. O trabalho teria outra “personalidade” se eu morasse num sítio ou na praia. O entorno é uma ferramenta do artista, a experiência gerada seja numa pintura ou numa instalação carrega, de algum modo, esse "reflexo" do momento e do lugar onde o artista vive e desenvolve sua produção.
(1) Em troca de e-mails no processo de construção da mostra.
Janeiro / fevereiro de 2019
Curadoria Leandro Muniz
Leandro Muniz - Gostaria de começar perguntando de onde veio a ideia para esta exposição.
Renata Pedrosa - Da minha parte, veio do desejo de criar uma situação diferente das experiências anteriores de exposições individuais na Virgílio; que desta vez a exposição proporcionasse encontros e trocas, como o que está acontecendo aqui agora.
Claudio Matsuno - Durante uma conversa com a Renata, ela sugeriu apresentar duas individuais simultâneas no mesmo espaço e aceitei na hora. Gosto dessa ideia de experimentar outras possibilidades e sair da zona de conforto ao encarar o espaço expositivo em conjunto.
LM - Uma das propostas é sublinhar que se trata de uma exposição em dupla ou de duas individuais simultâneas pensadas para o mesmo lugar. Isto fica claro na decisão de mostrar os trabalhos em cantos opostos da galeria, enfatizando as duas colunas que dividem o espaço, ao construir um banco que é ao mesmo tempo um objeto funcional e um elemento que reitera a ideia de diálogo. Além de trabalhos recentes, também propomos mostrar obras de outros períodos da produção de vocês. Gostaria que vocês comentassem o interesse por manter essas decisões.
RP - Gosto da ideia de criar uma diagonal no espaço e também da concentração de materiais em pontos específicos da sala. Mostrar obras de outros períodos é algo incomum para exposições individuais em galerias - geralmente mostra-se o que há de mais recente na produção dos artistas -, mas é uma questão que surgiu em nossas conversas e isso proporcionou uma revisão do meu percurso.
CM - Eu já havia pensado em mostrar trabalhos anteriores de cinco, dez ou quinze anos atrás ao lado de outros recentes. Para mim, esse tempo que parece longo, na verdade é curto dentro do processo de trabalho e até insuficiente para destacar uma mudança de postura efetiva dentro da produção. Embora meus trabalhos tenham formalizações muito distintas, me interessa sobretudo procurar pontos em comum entre os antigos e os novos. Agora, em companhia de outra artista no mesmo espaço, são possíveis outras leituras e discussões que, talvez, individualmente não fossem tão claras.
LM - A forma atomizada de expor os trabalhos na parede, além do título da mostra e da imagem usada na divulgação reforçam a sensação e a ideia de dispersão, que também parece ser um modus operandino trabalho de vocês - há uma diversidade grande de materiais e procedimentos ao longo do tempo, sem necessariamente uma continuidade direta entre um trabalho e outro, além disso, são recorrentes formas que sugerem dispersão em ambas as práticas. Como vocês pensam a ideia de dispersão em suas práticas em relação ao modo como os trabalhos são dispostos nesta exposição?
RP -Já havia comentado anteriormente sobre o interesse tanto nos aspectos propositivos da experiência de dispersão - experimentação, descoberta, devaneio - quanto naqueles que podem ser contra produtivos - falta de foco, incapacidade de concentração etc.(1) A ideia de dispersão me auxiliou no entendimento de questões sobre meu processo como a simultaneidade da representação e da apresentação; como o que faço hoje conecta-se com minha produção de há vinte anos atrás; dúvidas e incertezas que persistem ao longo do tempo; como o desejo de fazer está sempre intercalado por questionamentos sobre porque fazer; e como as mesmas ideias podem se manifestar em diversas linguagens e materiais.
CM - Eu procuro trabalhar com materiais com os quais nos deparamos no dia a dia. Meu ateliê é no centro de São Paulo e uso uma série de objetos apropriados ou comprados naquela região. A variedade de estímulos na cidade, gera uma experiência dispersiva que é, de algum modo, replicada no trabalho.
LM - Ambas as produções lidam com desdobramentos de uma ideia geral de “desenho” - seja o modo como o Cláudio dispõe objetos apropriados e assemblagesna parede ou nas formas orgânicas dos trabalhos em tecido da Renata, que sugerem um efeito gráfico pelo contraste entre os diversos tons de preto em relação ao branco da parede. Em ambos, um pensamento sobre a forma e a linha - que é a oposição clássica do desenho em relação à cor, embora isso possa ser facilmente contestado - parece predominar. Como vocês pensam o desenho em relação aos diversos materiais e procedimentos dos trabalhos?
RP - O desenho está presente do começo ao fim, seja o desenho como tentativa de materialização de acontecimentos sociais - como as transformações na ocupação da cidade - ou o desenho para além do lápis sobre o papel, como índice da ação humana - que pode ir de uma pegada na areia à marca de um corpo no lençol da cama - os rastros que são deixados pelos movimentos empreendidos pelas construções manuais.Essa pergunta me lembrou de um trecho do texto "Desenho e emancipação" de Flávio Motta: "Bem sabemos que a palavra 'desenho' tem, originariamente, um compromisso com a palavra 'desígnio'. Ambas se identificavam. Na medida em que restabelecermos, efetivamente, os vínculos entre as duas palavras, estaremos também recuperando a capacidade de influir no rumo do nosso viver. Assim, o desenho se aproximará da noção de Projeto (pro-jet), de uma espécie de lançar-se para a frente, incessantemente, movido por uma 'preocupação'". Me interessa, sobretudo, essa ideia de lançar-se para frente, incessantemente, movido por uma "preocupação" pois é assim que entendo o processo de produção dos trabalhos.
CM - Desde os primeiros trabalhos até hoje, o desenho e a pintura são os centros da minha produção. A maneira de apresentar pode sofrer alguma mudança, mas eles estão sempre lá, talvez não no sentido tradicional, mas quando desenvolvo trabalhos que envolvem objetos simples como cadarços, restos de calçados ou papelão, existe um pensamento intenso do desenho e de pintura, por serem composições que movimentam formas, cores e linhas articuladas por um pensamento plástico.
LM - A precariedade dos materiais é um ponto comum entre os trabalhos. Isso pode ser um aspecto propositivo, se pensarmos em um sentido de do it yourselfem que você trabalha com o que tem independentemente da situação, mas também pode ser problemático, se pensarmos na “estetização” e no “elogio” da precariedade. Como vocês pensam isso tanto em relação ao contexto da arte quanto do mundo atualmente?
RP - O sentido de "faça você mesmo" é o de transformar a matéria com as próprias mãos; experimentar, hesitar, fazer e desfazer; entrar num embate com o material sem estar certo do resultado. Para isso, escolho materiais que se prestam à manipulação e transformação mais direta, sem muitas exigências tecnológicas. Sem dúvida existe aí um risco de elogio à precariedade, uma reificação, mas isso é inerente a qualquer tentativa de denúncia de um dado estado: ao se "performar" o que se denuncia acaba-se por afirmar o que se busca negar.
CM - Eu tento não hierarquizar os materiais com os quais vou trabalhar, tentando, de algum modo, manipular uma bexiga ou uma moldura como se fossem cores e linhas, independentemente do valor desses materiais.Se um artista tem um ateliê com o espaço limitado, ele vai procurar se adaptar a ele para construir suas ideias e o mesmo acontece com o uso dos materiais. Creio que o artista trabalha com o que se depara, antes de qualquer outra coisa.
LM - Outro assunto que me chama a atenção na relação entre suas produções é a cidade - no trabalho da Renata como representação e no do Cláudio como resíduo. Vocês poderiam comentar a relação entre cidade x representação e cidade x resíduo?
RP - Tenho muito interesse pelas formas de representação da cidade. Por exemplo, os trabalhos da série "Arquiteturas Distópicas", presentes nesta exposição, têm como ponto de partida a imagem da capa do livro "Delirious New York" de Rem Koolhaas .Naquela imagem me chamou a atenção, sobretudo, o antropomorfismo dos ícones arquitetônicos, algo que busquei levar para os trabalhos. Não é a primeira vez que estabeleço uma relação entre edifícios ou imagens icônicas de NY e SP: no trabalho "Estaiada" (2012) criei uma justaposição entre um vídeo que mostra a sobreposição de desenhos da Ponte Octavio Frias de Oliveira e trechos da reconstituição da travessia de Philippe Petit numa corda bamba esticada entre as torres gêmeas do World Trade Center em 1974. Naquele momento, mais do que a associação formal entre as linhas do desenho da ponte e a corda do equilibrista, me interessava confrontar imagens espetaculares de ambos os cenários.
CM - Como comentei anteriormente, o que me chega em mãos vem da cidade, onde vivo e tenho minhas atividades. O trabalho teria outra “personalidade” se eu morasse num sítio ou na praia. O entorno é uma ferramenta do artista, a experiência gerada seja numa pintura ou numa instalação carrega, de algum modo, esse "reflexo" do momento e do lugar onde o artista vive e desenvolve sua produção.
(1) Em troca de e-mails no processo de construção da mostra.
Janeiro / fevereiro de 2019
A sala do castelo é deserta e espelhada
2017
Sítio Sonia, Ibiúna, SP
2017
Sítio Sonia, Ibiúna, SP
com Daniel Nasser
Diálogos
1998
Galeria SESC Paulista, São Paulo, SP
1998
Galeria SESC Paulista, São Paulo, SP
As esculturas realizadas por Renata Pedrosa são elaboradas a partir da reunião de materiais bem específicos. Látex, vaselina, cabelo e outras substâncias são utilizados a fim de criarem formas que revelam, sem portanto definir, um imaginário corpóreo. Ao invés de evocarem partes externas do corpo humano, suas obras sugerem partes internas tais como ossos, orgãos e cavidades. Quando a textura da pele é mencionada, ela o é, não tanto quanto invólucro, mas sim como superfície susceptível de enregistrar vestígios. Num todo, o corpo humano é concebido como um receptáculo de sensações e experiências. Sem recorrer à uma representação imitativa da natureza, os questionamentos presentes no trabalho de Renata Pedrosa surgem através do indescritível. Segundo a artista "são os sentidos que fornecem as ferramentas necessárias para a percepção". Confrontado as suas obras, o espectador ressente tensões entre uma abordagem tátil e visual de objetos tridimensionais. A complexidade inerente ao ato de percepção é exposta através de objetos ou instalações que incitam o espectador a considerar a impulsividade do gesto de tocar, à maneira de São Tomás: assim como a atitude de contemplação, ao jeito de um diletante. Em seus trabalhos, sensações tão opostas quanto repulsão e atração são provocadas devido às propriedades intrínsecas e simbólicas de cada material utilizado. Numa maneira bem pessoal de observar o mecanismo de percepção atual, gerado por uma civilização que se caracteriza pelo descomedimento de imagens e uma grande importância conferida à aparência externa das coisas, o trabalho de Renata Pedrosa apregoa um modo de percepção que não passa pelas imagens, mas sim pela assimilação e interiorização do que é exposto. Satre falava que quando um livro o interessava realmente, nenhuma imagem mental se formava. Atualmente, podemos constatar em algumas sociedades uma certa necessidade em guardar a aparência externa do corpo humano intacta, eternamente jovem e sem marcas. Dentro deste contexto, o trabalho de Renata Pedrosa transtorna tal conduta nos desvelando justamente a importância das impressões criadas com o passar do tempo. Em oposto ao comportamento do personagem descrito por Oscar Wilde, Dorian Gray, que para conservar sua beleza física preferia que a sua imagem representada num quadro, e não a sua própria pessoa, sofresse o efeito de experiências, a artista defronta tais alterações e as valoriza. Assim, os rastros que se imprimem no corpo, certamente assinalados após uma transformação experimentada pelo espírito, podem ser encarados como indicações positivas de uma evolução.
Adon Peres
Adon Peres