Cava decote gancho
2025
Des_apê, São Paulo, SP
2025
Des_apê, São Paulo, SP
Cava, decote e gancho, enlaçados pela arte de Renata Pedrosa
A série de trabalhos realizada durante a pandemia pela artista Renata Pedrosa, nos apresenta um conjunto de traçados em diferentes cores, feitos com lápis e materiais de desenho e costura para moldes de roupas, que retomam a história da artista com sua mãe, exímia costureira, desde sua infância. Agora, a partir de sua experiência avançada como artista, ela nos surpreende com a possibilidade de reconhecer o sentido preciso do que nomeamos como reinvenção. O que antes foi vivido como participação e contribuição num trabalho à quatro mãos, é atualizado, pelo seu estilo, numa condição de redução dos elementos que compuseram sua história. Já não se trata mais de um trabalho com o objetivo de criação de moldes para a confecção das roupas. A artista opera uma decantação que a conduz aos traços delicados e trabalhosos sobre o papel, cujo produto final é um envoltório para o olhar.
Cava, decote e gancho vestem o olhar: pela fineza dos traços, pela evocação do tempo de trabalho dispendido, pela escolha sensível das cores, assim como, pelo convite que suscitam para se deixar conduzir pelo vazio central que habita cada um dos três. Isso porque, é uma série de trabalhos onde os traços organizam os contornos do corpo. Contudo, se trata de um corpo sem membros, não havendo o desenho de cabeças, braços, pernas, ombros, rostos, mãos, ou sexos... E é exatamente nesse ponto que encontramos a excelência do trabalho simbólico realizado pela artista, uma vez que o material que nos constitue como seres de linguagem, nos permite reconhecer a presença pela ausência. É como se ao olhar para cada um dos trabalhos dessa série, soubéssemos que eles se referem aos elementos que irão nos vestir, não mais como roupas, mas como traços que escrevem e antecipam partes de um corpo por vir. Trata-se, portanto, de uma série que escreve os traços da proto história do corpo, enlaçada pelas marcas dos moldes das vestimentas que um dia irão vesti-lo Existem três pontos constitutivos que merecem especial destaque, principalmente quando recordamos, pela iconografia religiosa, a presença da folha de parreira sobre os corpos de Adão e Eva, depois da expulsão do Paraíso. Constatamos que, pela história cristã, o corpo é representado desde o início com uma presença encobridora, já que se trata de não esquecer do pecado e da culpa por ter desobedecido a Deus e, por isso mesmo, ficar doravante suscetível às tentações e aos suplícios da carne. O que nos leva a admitir que na referência dessa tradição, a qual vai orientar decisivamente a representação imagética ocidental dos corpos, encobertos, ou expostos, irá sempre escapar a presença de um Outro corpo.
Existe uma questão, pouco notada, sobre o tipo de materialidade que se emprega, quando da representação dos corpos, pelas imagens. Não foram muitas, mas não deixaram de ser contundentes, as diferentes experiências que procuraram dar expressão à noção de corpo, sua representação em imagens, de uma forma em que não é coincidente a noção de corpo próprio. Trata-se, da tradição que integra o corpo sem órgãos, de Artaud, o corpo inominável e irrepresentável, de Beckett, a Metamorfose do corpo humano em barata, de Kafka, a mutação do corpo humano em rinoceronte, de Ionesco, os corpos dispersos nas fotografias e postais de Warburg, a experiência íntima com a barata, em Clarice Lispector. No conjunto desses autores, e alguns outros, pode-se reconhecer o desaparecimento da representação habitual do corpo, de forma assegurada. Quando a inconsistência, a mutação e o vazio comparecem como forma de dizer do que acontece com os corpos, é porque não existe mais representação sustentável deles.
Cada um dos autores, do teatro, e da Literatura, procuraram dizer desse Outro corpo, incluindo, por seus textos e experiência, o impossível de dizer dele. Impossível de dizer, segundo a forma pela qual o representamos habitualmente. A materialidade dessa representação de agora é constituída por uma condição simbólica que não se reduz ao sentido. Mais ainda, se trata de incluir nesse impossível da representação, uma forma de dizer em que a identificação se desfaz. Não há como manter uma identificação imaginária com uma barata ou um rinoceronte. Por isso mesmo, a sustentação de si mesmo cai, ou seja, participa-se do absurdo. Esse absurdo é a entrada em cena de uma relação que passa a se estabelecer entre o corpo do leitor e o corpo da barata. A noção de corpo se modifica pela leitura do texto. O surpreendente é constatar que alguns sujeitos compõem seus textos, de dentro dessa condição absurda de ruptura do sentido.
Consideremos que a mudança na noção de representação do corpo em imagens unificadas, para a presença dos corpos sem imagens, ou distorcidas, implica, em primeiro lugar, reconhecer que a imagem unificada não tem duração definitiva e assegurada. Caso contrário, não haveriam as experiências de despersonalização, de estranhamento e recusa do corpo próprio. Quando a imagem corporal, no sentido da imagem do corpo próprio é alterada de forma perturbadora, sem a decisão do sujeito, significa que existe alguma causação inconsciente que se encontra em ação. Em Psicanálise, não se trata de encontrar os motivos, mas sim, de se virar com os acontecimentos. A experiência com o inconsciente nos ensina que não há nenhum sentido a ser revelado, mas o que importa, é poder se virar com as marcas, com os traços que constituiram a história de cada um. E é exatamente nessa tradição que introduz a estruturação dos corpos pelos traços, e não mais pelas imagens, que a série Cava, decote e gancho participa.
O segundo ponto constitutivo dessa série, tem a ver com a função que ocupa o vazio como ponto organizador do quadro. Por um lado, encontramos o vazio como sinonimo dos diferentes espaços deixados em branco. Eles cumprem a função de organizar o olhar através dos traçados que se distribuem pela folha de papel. Esse mesmo vazio é o que vai permitir que o desenho se torne quadro, ou seja, ele enquadra o olhar em direção ao corpo. Corpo, esse, sem o desenho das partes que o compõem: braço, perna, rosto....Trata-se, portanto, do lugar central do vazio da representação. Vazio da representação do corpo em imagens, vazio da noção de vestimenta, pelos traçados dos moldes que irão compô-las, e vazio de uma história contada agora pela obra da artista, durante o vazio da pandemia.
A possibilidade de incluir o vazio, pelo traço, é o que vai permitir aproximar os diferentes traçados dessa série, numa ligação com o que se visa, no extremo, pela arte da caligrafia chinesa e árabe. Nelas, a arte se encontra na expressão do vazio do traço, sua marca, desde o gesto que lhe dá origem, depois de muitos e muitos traços traçados. Não estamos longe de poder reconhecer que os desenhos e traçados infantis não coincidem com o que se recolhe nessa série, contudo, seria excessivo não dar o devido lugar a experiência da artista com o trabalho que avançou dos traçados infantis, até o cultivo e a dedicação minuciosa dos traços, pela arte.
Afirmei no início que a série, Cava, decote e gancho, veste o olhar, o enquadra. Ao mesmo tempo, ela tambem causa o olhar. Ela causa para olhar os detalhes dos traços, ela causa pela interrogação que suscita: são moldes de costura, é isso mesmo? É portanto, uma série que veste o olhar e o despe de sentido, ao mesmo tempo, refazendo-o pelo acompanhamento dos detalhes. Nesse sentido, somos convidados, a um só tempo, em nos despir e nos reencontrar. Num momento histórico em que o olhar é incessantemente conduzido por vozes que impõem adesão, visibilidade e conquistas, o chamado aos traços cumpre uma função política. Política da escrita. Religando cada um com o que é mais constitutivo, cultivam-se as condições para investir na vida através da insistência na sustentação do humano. Humanidade, essa, cada vez mais difícil de ser traçada pela arte, que não seja pelos seus restos.
Um dos elementos que diferenciam uma obra de arte, é o desejo que despertam para que as olhemos, de tempos em tempos, tendo o prazer de perceber detalhes já vistos, tanto quanto de outros que nos surpreendem.
Mauro Mendes Dias
A série de trabalhos realizada durante a pandemia pela artista Renata Pedrosa, nos apresenta um conjunto de traçados em diferentes cores, feitos com lápis e materiais de desenho e costura para moldes de roupas, que retomam a história da artista com sua mãe, exímia costureira, desde sua infância. Agora, a partir de sua experiência avançada como artista, ela nos surpreende com a possibilidade de reconhecer o sentido preciso do que nomeamos como reinvenção. O que antes foi vivido como participação e contribuição num trabalho à quatro mãos, é atualizado, pelo seu estilo, numa condição de redução dos elementos que compuseram sua história. Já não se trata mais de um trabalho com o objetivo de criação de moldes para a confecção das roupas. A artista opera uma decantação que a conduz aos traços delicados e trabalhosos sobre o papel, cujo produto final é um envoltório para o olhar.
Cava, decote e gancho vestem o olhar: pela fineza dos traços, pela evocação do tempo de trabalho dispendido, pela escolha sensível das cores, assim como, pelo convite que suscitam para se deixar conduzir pelo vazio central que habita cada um dos três. Isso porque, é uma série de trabalhos onde os traços organizam os contornos do corpo. Contudo, se trata de um corpo sem membros, não havendo o desenho de cabeças, braços, pernas, ombros, rostos, mãos, ou sexos... E é exatamente nesse ponto que encontramos a excelência do trabalho simbólico realizado pela artista, uma vez que o material que nos constitue como seres de linguagem, nos permite reconhecer a presença pela ausência. É como se ao olhar para cada um dos trabalhos dessa série, soubéssemos que eles se referem aos elementos que irão nos vestir, não mais como roupas, mas como traços que escrevem e antecipam partes de um corpo por vir. Trata-se, portanto, de uma série que escreve os traços da proto história do corpo, enlaçada pelas marcas dos moldes das vestimentas que um dia irão vesti-lo Existem três pontos constitutivos que merecem especial destaque, principalmente quando recordamos, pela iconografia religiosa, a presença da folha de parreira sobre os corpos de Adão e Eva, depois da expulsão do Paraíso. Constatamos que, pela história cristã, o corpo é representado desde o início com uma presença encobridora, já que se trata de não esquecer do pecado e da culpa por ter desobedecido a Deus e, por isso mesmo, ficar doravante suscetível às tentações e aos suplícios da carne. O que nos leva a admitir que na referência dessa tradição, a qual vai orientar decisivamente a representação imagética ocidental dos corpos, encobertos, ou expostos, irá sempre escapar a presença de um Outro corpo.
Existe uma questão, pouco notada, sobre o tipo de materialidade que se emprega, quando da representação dos corpos, pelas imagens. Não foram muitas, mas não deixaram de ser contundentes, as diferentes experiências que procuraram dar expressão à noção de corpo, sua representação em imagens, de uma forma em que não é coincidente a noção de corpo próprio. Trata-se, da tradição que integra o corpo sem órgãos, de Artaud, o corpo inominável e irrepresentável, de Beckett, a Metamorfose do corpo humano em barata, de Kafka, a mutação do corpo humano em rinoceronte, de Ionesco, os corpos dispersos nas fotografias e postais de Warburg, a experiência íntima com a barata, em Clarice Lispector. No conjunto desses autores, e alguns outros, pode-se reconhecer o desaparecimento da representação habitual do corpo, de forma assegurada. Quando a inconsistência, a mutação e o vazio comparecem como forma de dizer do que acontece com os corpos, é porque não existe mais representação sustentável deles.
Cada um dos autores, do teatro, e da Literatura, procuraram dizer desse Outro corpo, incluindo, por seus textos e experiência, o impossível de dizer dele. Impossível de dizer, segundo a forma pela qual o representamos habitualmente. A materialidade dessa representação de agora é constituída por uma condição simbólica que não se reduz ao sentido. Mais ainda, se trata de incluir nesse impossível da representação, uma forma de dizer em que a identificação se desfaz. Não há como manter uma identificação imaginária com uma barata ou um rinoceronte. Por isso mesmo, a sustentação de si mesmo cai, ou seja, participa-se do absurdo. Esse absurdo é a entrada em cena de uma relação que passa a se estabelecer entre o corpo do leitor e o corpo da barata. A noção de corpo se modifica pela leitura do texto. O surpreendente é constatar que alguns sujeitos compõem seus textos, de dentro dessa condição absurda de ruptura do sentido.
Consideremos que a mudança na noção de representação do corpo em imagens unificadas, para a presença dos corpos sem imagens, ou distorcidas, implica, em primeiro lugar, reconhecer que a imagem unificada não tem duração definitiva e assegurada. Caso contrário, não haveriam as experiências de despersonalização, de estranhamento e recusa do corpo próprio. Quando a imagem corporal, no sentido da imagem do corpo próprio é alterada de forma perturbadora, sem a decisão do sujeito, significa que existe alguma causação inconsciente que se encontra em ação. Em Psicanálise, não se trata de encontrar os motivos, mas sim, de se virar com os acontecimentos. A experiência com o inconsciente nos ensina que não há nenhum sentido a ser revelado, mas o que importa, é poder se virar com as marcas, com os traços que constituiram a história de cada um. E é exatamente nessa tradição que introduz a estruturação dos corpos pelos traços, e não mais pelas imagens, que a série Cava, decote e gancho participa.
O segundo ponto constitutivo dessa série, tem a ver com a função que ocupa o vazio como ponto organizador do quadro. Por um lado, encontramos o vazio como sinonimo dos diferentes espaços deixados em branco. Eles cumprem a função de organizar o olhar através dos traçados que se distribuem pela folha de papel. Esse mesmo vazio é o que vai permitir que o desenho se torne quadro, ou seja, ele enquadra o olhar em direção ao corpo. Corpo, esse, sem o desenho das partes que o compõem: braço, perna, rosto....Trata-se, portanto, do lugar central do vazio da representação. Vazio da representação do corpo em imagens, vazio da noção de vestimenta, pelos traçados dos moldes que irão compô-las, e vazio de uma história contada agora pela obra da artista, durante o vazio da pandemia.
A possibilidade de incluir o vazio, pelo traço, é o que vai permitir aproximar os diferentes traçados dessa série, numa ligação com o que se visa, no extremo, pela arte da caligrafia chinesa e árabe. Nelas, a arte se encontra na expressão do vazio do traço, sua marca, desde o gesto que lhe dá origem, depois de muitos e muitos traços traçados. Não estamos longe de poder reconhecer que os desenhos e traçados infantis não coincidem com o que se recolhe nessa série, contudo, seria excessivo não dar o devido lugar a experiência da artista com o trabalho que avançou dos traçados infantis, até o cultivo e a dedicação minuciosa dos traços, pela arte.
Afirmei no início que a série, Cava, decote e gancho, veste o olhar, o enquadra. Ao mesmo tempo, ela tambem causa o olhar. Ela causa para olhar os detalhes dos traços, ela causa pela interrogação que suscita: são moldes de costura, é isso mesmo? É portanto, uma série que veste o olhar e o despe de sentido, ao mesmo tempo, refazendo-o pelo acompanhamento dos detalhes. Nesse sentido, somos convidados, a um só tempo, em nos despir e nos reencontrar. Num momento histórico em que o olhar é incessantemente conduzido por vozes que impõem adesão, visibilidade e conquistas, o chamado aos traços cumpre uma função política. Política da escrita. Religando cada um com o que é mais constitutivo, cultivam-se as condições para investir na vida através da insistência na sustentação do humano. Humanidade, essa, cada vez mais difícil de ser traçada pela arte, que não seja pelos seus restos.
Um dos elementos que diferenciam uma obra de arte, é o desejo que despertam para que as olhemos, de tempos em tempos, tendo o prazer de perceber detalhes já vistos, tanto quanto de outros que nos surpreendem.
Mauro Mendes Dias







