Lampejo
2019
Galeria Virgilio, São Paulo, SP
Claudio Matsuno e Renata Pedrosa
Curadoria Leandro Muniz

Leandro Muniz - Gostaria de começar perguntando de onde veio a ideia para esta exposição.
Renata Pedrosa - Da minha parte, veio do desejo de criar uma situação diferente das experiências anteriores de exposições individuais na Virgílio; que desta vez a exposição proporcionasse encontros e trocas, como o que está acontecendo aqui agora.
Claudio Matsuno - Durante uma conversa com a Renata, ela sugeriu apresentar duas individuais simultâneas no mesmo espaço e aceitei na hora. Gosto dessa ideia de experimentar outras possibilidades e sair da zona de conforto ao encarar o espaço expositivo em conjunto.
LM - Uma das propostas é sublinhar que se trata de uma exposição em dupla ou de duas individuais simultâneas pensadas para o mesmo lugar. Isto fica claro na decisão de mostrar os trabalhos em cantos opostos da galeria, enfatizando as duas colunas que dividem o espaço, ao construir um banco que é ao mesmo tempo um objeto funcional e um elemento que reitera a ideia de diálogo. Além de trabalhos recentes, também propomos mostrar obras de outros períodos da produção de vocês. Gostaria que vocês comentassem o interesse por manter essas decisões.
RP - Gosto da ideia de criar uma diagonal no espaço e também da concentração de materiais em pontos específicos da sala. Mostrar obras de outros períodos é algo incomum para exposições individuais em galerias - geralmente mostra-se o que há de mais recente na produção dos artistas -, mas é uma questão que surgiu em nossas conversas e isso proporcionou uma revisão do meu percurso.
CM - Eu já havia pensado em mostrar trabalhos anteriores de cinco, dez ou quinze anos atrás ao lado de outros recentes. Para mim, esse tempo que parece longo, na verdade é curto dentro do processo de trabalho e até insuficiente para destacar uma mudança de postura efetiva dentro da produção. Embora meus trabalhos tenham formalizações muito distintas, me interessa sobretudo procurar pontos em comum entre os antigos e os novos. Agora, em companhia de outra artista no mesmo espaço, são possíveis outras leituras e discussões que, talvez, individualmente não fossem tão claras.
LM - A forma atomizada de expor os trabalhos na parede, além do título da mostra e da imagem usada na divulgação reforçam a sensação e a ideia de dispersão, que também parece ser um modus operandino trabalho de vocês - há uma diversidade grande de materiais e procedimentos ao longo do tempo, sem necessariamente uma continuidade direta entre um trabalho e outro, além disso, são recorrentes formas que sugerem dispersão em ambas as práticas. Como vocês pensam a ideia de dispersão em suas práticas em relação ao modo como os trabalhos são dispostos nesta exposição?
RP -Já havia comentado anteriormente sobre o interesse tanto nos aspectos propositivos da experiência de dispersão - experimentação, descoberta, devaneio - quanto naqueles que podem ser contra produtivos - falta de foco, incapacidade de concentração etc.(1) A ideia de dispersão me auxiliou no entendimento de questões sobre meu processo como a simultaneidade da representação e da apresentação; como o que faço hoje conecta-se com minha produção de há vinte anos atrás; dúvidas e incertezas que persistem ao longo do tempo; como o desejo de fazer está sempre intercalado por questionamentos sobre porque fazer; e como as mesmas ideias podem se manifestar em diversas linguagens e materiais.
CM - Eu procuro trabalhar com materiais com os quais nos deparamos no dia a dia. Meu ateliê é no centro de São Paulo e uso uma série de objetos apropriados ou comprados naquela região. A variedade de estímulos na cidade, gera uma experiência dispersiva que é, de algum modo, replicada no trabalho.
LM - Ambas as produções lidam com desdobramentos de uma ideia geral de “desenho” - seja o modo como o Cláudio dispõe objetos apropriados e assemblagesna parede ou nas formas orgânicas dos trabalhos em tecido da Renata, que sugerem um efeito gráfico pelo contraste entre os diversos tons de preto em relação ao branco da parede. Em ambos, um pensamento sobre a forma e a linha - que é a oposição clássica do desenho em relação à cor, embora isso possa ser facilmente contestado - parece predominar. Como vocês pensam o desenho em relação aos diversos materiais e procedimentos dos trabalhos?
RP - O desenho está presente do começo ao fim, seja o desenho como tentativa de materialização de acontecimentos sociais - como as transformações na ocupação da cidade - ou o desenho para além do lápis sobre o papel, como índice da ação humana - que pode ir de uma pegada na areia à marca de um corpo no lençol da cama - os rastros que são deixados pelos movimentos empreendidos pelas construções manuais.Essa pergunta me lembrou de um trecho do texto "Desenho e emancipação" de Flávio Motta: "Bem sabemos que a palavra 'desenho' tem, originariamente, um compromisso com a palavra 'desígnio'. Ambas se identificavam. Na medida em que restabelecermos, efetivamente, os vínculos entre as duas palavras, estaremos também recuperando a capacidade de influir no rumo do nosso viver. Assim, o desenho se aproximará da noção de Projeto (pro-jet), de uma espécie de lançar-se para a frente, incessantemente, movido por uma 'preocupação'". Me interessa, sobretudo, essa ideia de lançar-se para frente, incessantemente, movido por uma "preocupação" pois é assim que entendo o processo de produção dos trabalhos.
CM - Desde os primeiros trabalhos até hoje, o desenho e a pintura são os centros da minha produção. A maneira de apresentar pode sofrer alguma mudança, mas eles estão sempre lá, talvez não no sentido tradicional, mas quando desenvolvo trabalhos que envolvem objetos simples como cadarços, restos de calçados ou papelão, existe um pensamento intenso do desenho e de pintura, por serem composições que movimentam formas, cores e linhas articuladas por um pensamento plástico.
LM - A precariedade dos materiais é um ponto comum entre os trabalhos. Isso pode ser um aspecto propositivo, se pensarmos em um sentido de do it yourselfem que você trabalha com o que tem independentemente da situação, mas também pode ser problemático, se pensarmos na “estetização” e no “elogio” da precariedade. Como vocês pensam isso tanto em relação ao contexto da arte quanto do mundo atualmente?
RP - O sentido de "faça você mesmo" é o de transformar a matéria com as próprias mãos; experimentar, hesitar, fazer e desfazer; entrar num embate com o material sem estar certo do resultado. Para isso, escolho materiais que se prestam à manipulação e transformação mais direta, sem muitas exigências tecnológicas. Sem dúvida existe aí um risco de elogio à precariedade, uma reificação, mas isso é inerente a qualquer tentativa de denúncia de um dado estado: ao se "performar" o que se denuncia acaba-se por afirmar o que se busca negar.
CM - Eu tento não hierarquizar os materiais com os quais vou trabalhar, tentando, de algum modo, manipular uma bexiga ou uma moldura como se fossem cores e linhas, independentemente do valor desses materiais.Se um artista tem um ateliê com o espaço limitado, ele vai procurar se adaptar a ele para construir suas ideias e o mesmo acontece com o uso dos materiais. Creio que o artista trabalha com o que se depara, antes de qualquer outra coisa.
LM - Outro assunto que me chama a atenção na relação entre suas produções é a cidade - no trabalho da Renata como representação e no do Cláudio como resíduo. Vocês poderiam comentar a relação entre cidade x representação e cidade x resíduo?
RP - Tenho muito interesse pelas formas de representação da cidade. Por exemplo, os trabalhos da série "Arquiteturas Distópicas", presentes nesta exposição, têm como ponto de partida a imagem da capa do livro "Delirious New York" de Rem Koolhaas .Naquela imagem me chamou a atenção, sobretudo, o antropomorfismo dos ícones arquitetônicos, algo que busquei levar para os trabalhos. Não é a primeira vez que estabeleço uma relação entre edifícios ou imagens icônicas de NY e SP: no trabalho "Estaiada" (2012) criei uma justaposição entre um vídeo que mostra a sobreposição de desenhos da Ponte Octavio Frias de Oliveira e trechos da reconstituição da travessia de Philippe Petit numa corda bamba esticada entre as torres gêmeas do World Trade Center em 1974. Naquele momento, mais do que a associação formal entre as linhas do desenho da ponte e a corda do equilibrista, me interessava confrontar imagens espetaculares de ambos os cenários.
CM - Como comentei anteriormente, o que me chega em mãos vem da cidade, onde vivo e tenho minhas atividades. O trabalho teria outra “personalidade” se eu morasse num sítio ou na praia. O entorno é uma ferramenta do artista, a experiência gerada seja numa pintura ou numa instalação carrega, de algum modo, esse "reflexo" do momento e do lugar onde o artista vive e desenvolve sua produção.

(1) Em troca de e-mails no processo de construção da mostra.
Janeiro / fevereiro de 2019