Sobras
2019
Centro Cultural Barco, São Paulo, SP
O trabalho Sobras teve inicio com a exploração das ruínas industriais da Zona Leste de São Paulo. A ideia era buscar o resto, a sobra, o refugo das fábricas. A presença de vedações em grande parte das janelas das ruínas fabris indicou para uma associação formal entre fábrica e presídio. Iniciei com registros em vídeo digital, com enquadramento frontal, das janelas das fábricas. Posteriormente, tais imagens foram montadas em ordem aleatória em um programa de edição e depois registradas por um processo de gravação de tela. Durante esta gravação, a timelinedo programa de edição foi ora acelerado, ora desacelerado, criando variações no ritmo da sequência de janelas, intercaladas por imagens estáticas de arames farpados. Para enfatizar a associação entre fábrica e presídio, acrescentei a narração de um trecho do livro Os afogados e os sobreviventesde Primo Levi. O trecho escolhido discorre sobre o choque do ingresso dos prisioneiros em Auschwitze sobre o fenômeno intitulado pelo autor de “zona cinzenta”, uma zona de inter-relações com contornos mal definidos, que ao mesmo tempo separa e une os senhores e os escravos.
Para incluir uma reflexão sobre as condições de trabalho implícitas na relação senhor X escravo, busquei referir ao trabalhador precarizado dos tempos atuais e sua servidão indefinida. Recorri a um dramaturgo que conhece bem o desespero do homem moderno: Samuel Beckett. Escolhi a pantomima Atos sem Palavras II que explora uma dimensão interna do homem, o fato dele ser impelido por uma força compulsiva que nunca o deixará muito tempo na inação. Adaptei a pantomima de Beckett para uma ação que foi registrada com câmera de vídeo digital em duas tomadas, uma em grande plano e plano detalhe e outra em plano médio e em p&b, simulando o ponto de vista de uma câmera de vigilância.A associação dos três vídeos compõe o trabalho: as imagens das janelas arruinadas, com a narração entrecortada do ritual de entrada no campo de concentração, são apresentadas ao lado da representação da rotina diária de um trabalhador; ao mesmo tempo que, num monitor de 10 polegadas, o mesmo trabalhador é visto a distância. Assim articulados, expõem o deslocamento do trabalhador assalariado e controlado no interior das fábricas para o trabalhador precarizado, autogerido e monitorado, expondo as transformações nas relações do trabalho em tempos de capitalismo financeiro.

Renata Pedrosa